quarta-feira, 24 de março de 2010

Notas sobre as bibliotecárias de antanho


O mundo mudou tanto nos últimos anos que vez em quando a gente se pega lembrando de coisas que nem têm tanta idade assim para serem chamadas de "antigas", mas definitivamente ganharam uma camada de mofo simbólico que restaurador nenhum consegue remover. Não que sejam, necessariamente, coisas ruins, com artrites defasadas e outras marcas borolentas de um tempo morto e enterrado.

Por exemplo: as bibliotecárias. Em tempos de youtube, facebook e congêneres, é de se perguntar - e as bibliotecárias, como é que ficam? Ainda existem? Decerto que sim, como diria, assim nesta linguagem pré-datada, uma delas. Mas certamente não com a mesma feição, aquele estilo entre maternal e autoritário de antigamente.

Tenho cá comigo três histórias inesquecíveis envolvendo bibliotecárias. Não por terem mudado minha vida ou me aberto os olhos para realidades novas, coisa assim. Pelo contrário, são causos ridículos, pequenos, até singelos, se é o caso de usar uma outra palavra que condiz com o antigo mundo desta profissional de antanho. Mas são marcantes, na sua simplicidade quase poética - na sua inocência de uma era que definitivamente se foi - as tais três histórias.

Vamos a elas.

História número 1) Sou uma criança, não entendo nada. Mas descobri a biblioteca municipal da minha pequena cidade e vivo lá, lendo uns livros e pegando outros emprestados. Coisas de leitor recém-apresentado a este mundo de ficção, livros de letras grandes, figuras maiores ainda, textos curtos e emoções de fôlego longo.

Seleciono, ansioso, um livro. Só um. História curta, ilustrações vastas, como têm sido os últimos que tenho folheado, dado à pouca idade do leitor em progressão. Vou ao balcão da bibliotecária, ela anota tudo na ficha, data de devolução (o dia seguinte), eu assino onde devo, sentindo a importância da minha tenra pessoa.

Ok. Trâmites bibliotecários importados, sigo com o livro debaixo do braço para o armazém onde meu pai, feirante ou mangaieiro (você escolhe o termo, dá no mesmo), estocava as frutas e verduras que venderia no fim de semana. O armazém era grandão, meio escuro, uma caverna perfeita pra gente entrar num livro que prometia aquela aventura infantil de grandes possibilidades.

Leio, leio, no ritmo da boa ansiedade e, é claro, rapidinho chego ao final da história. E não é que bateu aquela vontade de ler outro livro na sequência? Aquela fome de leitura, de informação e fantasia, tudo misturado.

Ok. Pulo da ruma de sacos de cocos onde estava imerso em minha leitura e pego o rumo da biblioteca, que não fica muito longe. Paro diante da bibliotecária disposto a devolver o livro que acabei de ler, antes mesmo do prazo estipulado, mal vendo a hora de seguir para a estante das obras infantis e escolher outro para ler naquele dia mesmo.

"Não", corta a bibliotecária. "Não o quê?", penso eu, ainda novato na matéria de pegar livros emprestados.

"Não pode devolver hoje não, só amanhã."

"Mas eu já acabei de ler e queria devolver pra poder pegar outro."

"Imagine! Não pode. Olhe aqui a data de devolução."

Olho, com os olhos grandes de menino faminto por mais um livro.

"Tá aqui. A data de devolução é amanhã. Você não pode devolver hoje não."

"E não posso pegar outro hoje mesmo?"

"Claro que não. Primeiro tem que devolver esse aí."

"Então tá certo. Quero devolver, tome o livro."

"Não posso receber hoje. Só amanhã, que é a data da devolução".

Ah, bom. Quantos anos eu tinha? Sete, oito? Quantos anos tinha a bibliotecária cujo nome e cujo rosto esqueci? Vinte, trinta? Por aí.

Hoje, contando a história que parece ter se passado alguns anos antes de Cristo, posso dizer que não guardo nenhuma espécie de raiva da bibliotecária. Lembro que fiquei desapontado, mas como era apenas um menino, devo ter arranjado outra coisa pra me divertir, seguro de que o dia seguinte chegaria logo e lá estaria eu de volta, enfim devolvendo livro lido e tendo a chance de pegar outro. Ou outros.

Hoje, o sentimento que tenho para com aquela antiga bibliotecária - que já então deveria ser o que a gente pode chamar de uma pessoa antiquada - é até de uma certa ternura. Porque ela, coitada, na sua ignorância ritual, na sua obediência burocrática à prova do olhar de uma criança ansiosa, talvez tenha contribuído pra fazer de mim um leitor mais insistente e teimoso.

Do tipo que não se deteve diante de um primeiro e inesquecível "não" - e se manteve próximo aos livros, apesar do cerco equivocado das bibliotecárias de um tempo que não se fabrica mais. O que, por ironia, acaba me deixando até com uma estranha espécie de saudades delas.

*As histórias número 2 e 3 ficam para as próximas postagens, pra não abusar da extensão dos relatos.

*A ilustração é a capa da edição de "Robinson Crusoé" pela editora Brasiliense, um clássico infanto juvenil que peguei emprestado na mesma biblioteca e que jamais consegui ler na íntegra. Uns poucos parágrafos iniciais eram algo tão instigante que eu precisava parar para absorver e, nisso, nesse ler e parar, acabou ficando para trás.

2 comentários:

ana sua mana disse...

sebá, lembrei agora da bibliotecária da biblioteca regional de botafogo. fui uma vez, com colegas, pra fazer um trabalho da escola. ela usava coque e óculos, era morena, e tão chata, tão chata ( não deixava a gente nem sussurrar...) que nunca mais botei os pés lá. e só lembrei que lembrava dessa história depois de ler vc, aqui...acho que tinha uns nove, dez anos.
beijins.

Anônimo disse...

Oi,
adooooro ler e escrever, são as duas coisas que mais gosto de fazer na vida e como tal já tive que enfrentar um batalhão de bibliotecárias chatas nos colégios em que já estudei. As do meu primeiro colégio só ficavam reclamando do barulho que eu fazia quando levava minhas amigas pra passear pelas estantes e me ajudar a escolher um livro (por eu odiava escolher sozinha)e as do meu colégio atual reclamam que eu pego livros demais e devolvo aos pedaços ( o que eu vou fazer? ler os quatro de uma vez? )Seja o que for, as bibliotecárias podem ser as mais chatas do mundo mas eu não deixarei de ir a uma biblioteca quando tiver vontade de ler! Nunca! :D bjs
Ah, eu tenho 15 ( devo ser a única nessa idade que não vive no orkut e etc) ¬¬