quinta-feira, 11 de março de 2010

Onde o povo (não) está


A primeira reação é de espanto e indignação. Mas, pense bem: a notícia de que as secretarias municipais de Saúde e Educação estão em vias de se instalar num hotel de luxo na Ladeira do Sol pode ser a melhor que tivemos em termos de gestão pública no Rio Grande do Norte nos últimos tempos. Pra começar, se há duas coisas que são naturalmente transitórias, essas coisas são 1) o poder; e 2) a estada num hotel. Portanto, pra início de conversa, a proposta, quer dizer, o negócio, é coerente. E coerência política é o mínimo que se exige de um gestor público, concorda?

A ideia de transferir secretarias públicas para hotéis de luxo só se complica quando a gente lembra que esse negócio de turismo, bandeiras, cinco estrelas e outros agregados podem desvirtuar a inocente proposta inicial. Assim: e se a secretaria de Turismo resolver se instalar num resort, será que a coerência aparente não pode se transformar em conforto inoperante? E se a Secretaria de Meio Ambiente achar por bem atender ao público num spa alternativo, daqueles onde não se entra antes de deixar um gordo cheque na portaria? Ou se a Secretaria de Planejamento, achando-se mais importante do que as outras, decidir que só despacha se for a bordo de um navio de cruzeiro?

Não é demais lembrar que grandes e insolúveis problemas começam com pequenas e boas intenções. E a transferência de duas secretarias municipais para um hotel pode, além de deixar o funcionalismo meio contemplativo na hora do expediente, disparar uma acirrada competição entre os escalões mais elevados. Assim: e se um assessor de maior quilate resolver disputar com um secretário de maior destaque político a primazia de instalar seu gabinete na Ilha de Caras? E se a medida do prestígio de quem vive em torno do governante passar a ser o número de estrelas do prédio onde ele estiver, digamos, lotado? Se for assim, é bem capaz que ao prefeito ou ao governador não reste alternativa a não ser administrar a cidade ou o estado à distância, quem sabe do alto de um hotel em Dubai - pra não haver o menor risco de algum concorrente lhe fazer sombra política.

O fato é que, independente da qualidade do parque aquático da secretaria em questão, e de acessórios como bar, serviço de quarto e cardápio do restaurante, a transferência de secretarias municipais para as instalações do que foi um hotel traem, nem que seja involuntariamente, aquilo que se costuma chamar de transformação do público em privado, ou privatização do que é público. Ninguém precisa cometer aquela indiscrição mal educada de apontar o dedo - para o hotel ou para a secretaria, ou para ambos, já que virtualmente funcionarão no mesmo lugar. Mas a mensagem estará lá, basta saber ler.

Melhor seria se, no lugar de hotéis de luxo, as secretarias municipais ou estaduais fizessem a experiência inédita de se instalar em lugares bem mais coerentes com suas atribuições. Assim: a Secretaria de Saúde se instalaria no pronto-socorro mais movimentado da cidade ou do estado. O secretário teria direito a uma mesa privativa, claro, mas ali mesmo, no lugar onde chegam os feridos por acidentes, as vítimas das epidemias, as crianças sem chances de atendimento em hospitais melhores. Ninguém precisaria contar ao titular da pasta os problemas da área pelo simples motivo de que ele, pessoalmente, veria tudo. A administração do corpo médico também seria feita praticamente sem intermediários. E a prestação de contas do secretário ao povo, idem - tudo no ato, na sala de emergência, como requer a saúde pública.

Pelo mesmo princípio, a Secretaria de Educação poderia se instalar no pátio do recreio da escola mais pobre do lugar. A Secretaria de Segurança poderia funcionar na Delegacia de Plantão mais movimentada. A Secretaria de Justiça poderia muito bem se abrigar no presídio mais superlotado, que é justamente o que mais precisa de sua atenção. O secretário de Meio Ambiente poderia trabalhar de bermuda e camiseta atolado num mangue bem viscoso e preservado - e se o pessoal da área reclamasse do desconforto, bastaria lembrar que os ambientalistas são justamente as pessoas mais preocupadas com a coerência.

Faltou o prefeito e o governador. Onde instalar a maior autoridade da cidade ou do estado? Na sua casa, meu caro. Sim, a sua mesmo, não disfarce nem olhe para o lado. Então os governantes não se apresentam sempre como defensores do povo, representantes de todos ou qualquer outra generalidade como essa? Então: nada mais justo - e coerente - do que instalar o, digamos, "palácio do governo", na casa das pessoas. Em sistema de rodízio, claro, que é pra não cansar nem o hóspede nem o anfitrião - e evitar qualquer subproduto do tipo corrupção camarada ou nepotismo informal.

Imagine: o prefeito ou o governador discutindo planos com os secretários no seu quintal, ou despachando com seus vizinhos na janela da sala... Ou então anunciando decisões enquanto toma o cafezinho que a patroa preparou, ou ainda voltando atrás nas idéias absurdas que anunciou, com os pés confortavelmente apoiados no braço da sua poltrona preferida? Isso sim é que seria uma verdadeira democracia (porque ele, dependendo do bairro onde você mora, estaria onde o povo está), um autêntica consciência da transitoriedade do poder (porque na semana seguinte ele estaria na casa daquele seu vizinho invejoso) e um exemplo de coerência a toda prova (porque até o prefeito e o governador têm direito a um pouco de privacidade de vez em quando).

Dito isso, a gente nem precisa perder tempo calculando o que se poderia fazer com o valor das diárias que as secretarias municipais de Educação e Saúde pagarão para funcionar no hotel da Ladeira do Sol. Seria muita mesquinharia, pra não dizer falta de sensibilidade com a necessidade de coerência por parte do poder público.

* Publicado no Novo Jornal (Natal-RN)

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