A melhor maneira de se deixar impactar pelo calor da procissão não é, necessariamente, juntar-se a ela e caminhar entre cânticos e orações pelos paralelepípedos poéticos da cidade. Há uma maneira alternativa, que é esperar por ela em qualquer ponto das imediações da igreja matriz. Quem fizer isso, de uma janela, uma cadeira na calçada ou escorado num poste de iluminação pública, vai assistir a um rico curta metragem sobre o povo brasileiro. Basta ter olhos para filmá-lo, e ouvidos para saber editar mentalmente os restos de conversas, ruídos e fiapos de música distante que também fazem parte deste momento.
Derrubado por uma virose de oito dias, o corpo esmigalhado por um dor que parecia querer me derreter as juntas, sonolência drogada causada por um antibiótico, não pude acompanhar a procissão de Nossa Senhora da Guia, o rito de encerramento da festa da padroeira de Acari, RN, onde o Sopão mantém desde a noite de quarta-feira seu posto de observação dos rituais da vida. Incapacitado para caminhar, mas não para contemplar, instalei-me entre a cadeira da calçada, a janela e o portal de casa, aqui na rua da Matriz, para esperar a procissão chegar. Dezenas de pessoas fizeram o mesmo, não sei por quais motivos. O fato é que a simples reunião destas pessoas neste lugar já fornece material áudio-visual mais que suficiente para o filme começar. Liguei minha câmera. Me acompanhe.
Velhos se reencontram, trocam abraços afetuosos. Homens e mulheres, cabelos brancos, roupas de festa, visivelmente gente que passou a juventude se não junto, pelo menos próximo. A revelação da saudade no olhar – saudade do amigo e saudade deles mesmos, algum tempo atrás. Do outro lado da rua, a família de posses escorada no carro reluzente. Cintos que combinam com sapatos. Grandes óculos de sol como os de antigamente. Os loucos do interior, a mulher que grudou uma sacola de supermercado na bolsa e distrai um grupo de crianças enquanto é motivo de chacota para um grupo de mulheres bem vestidas escoradas nas paredes. O olhar do trabalhador braçal, negro, forte e desgastado, o homem comido pelo tempo antes da hora mas ainda assim resistente e que lidera a família de caboclos no esperado dia de festa. A velhinha com cara de Madame Mim de Walt Disney que passa apressada com a roupa de festa por baixo de uma túnica azul meio transparente, uma visão meio Glauber Rocha – aquele azul berrante e no entanto translúcido, chinelas de dedo, como a última integrante de uma congregação cujos membros já foram todos para o além ou pertencem todos a um tempo que definitivamente acabou. Uma sobrevivente de Canudos desfilando sua teimosia azul nas ruas de Acari, como a praguejar silenciosamente contra os males nunca sanados da República.
E então uma chuva de foguetões anuncia que a procissão está chegando ao pátio da Matriz. A cada luz que explode no céu, acende-se uma centelha de fé no olhar do quem espera cá embaixo. A banda ataca um antigo tema de festas populares e enche a rua com um sopro de algo poderoso, como se levantasse a poeira invisível e benfazeja de um lençol de fé que a tudo deseja cobrir. Olho para Bernardo se balançando na cadeira de criança enquanto assiste comigo à chegada da procissão, lembro imediatamente do avô dele, Chico Torres, que fisicamente não está mais aqui com a gente (e, se estivesse, certamente estaria presente neste momento) e sinto os olhos cheios de água. A procissão finalmente chega, espalhando sua multidão em cada recanto do pátio e da rua da Matriz. Logo virão os sermões e os vivas a Nossa Senhora da Guia. Rejane chega trazendo Cecília adormecida no braço. Dormiu a procissão quase toda, o outro anjo daqui de casa.
Mas o momento mais verdadeiro - por espontâneo - já passou. É aquele vácuo que se dá quando a procissão ainda não chegou, criando um momento que deixa ler em todos os olhares um certo espírito de espera por alguma coisa dispersa no ar. Fé, fraqueza, esperança ou incerteza, tudo isso pode ser, chame como quiser. Mas esteja certo de que é algo que se dissolve instataneamente tão logo a imagem da padroeira surge pronta para subir ao altar. Revelador, finito, rico até em sua tristeza. É assim o momento que antecede a chegada da procissão.
Um comentário:
Oi colega, soube de sua vinda a Acari e que ficou gripado (Tia Dalvinha me contou), gostei deste texto sobre a procissão em Acari, me remete à procissao aqui de Parelhas, que há muito eu não participava (há mais ou menos 20 anos continuamos comemorando o aniversario de Guia Bezerra no dia 20 de janeiro. Restou apenas nós dois do grupo)este ano, a pedido de Daguia (ela veia aqui me falar do e-mail que você mandou prá ela. Valeu a força)nós fomos. Até parece que eu não morava em Parelhas há muito. Participamos do procissao desde a "arrumação" em frene à matriz, até a descida da bandeira. Depois festejamos o "novo" aniversario de Daguia.
Abraços aos seus.
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