Quem, num passado distante, leu "A Ilha", de Fernando Moraes, e no meio dos anos 80 encarou "Fidel e a Religião", de Frei Betto, tem quase a obrigação de ler, agora, o que parece ser o mais urgente, honesto e revelador livro com um relato de como é a vida real atualmente em Cuba. Todo cuidado é pouco quando se busca informações sobre o cotidiano dos moradores da ilha cuja revolução encantou povos de um continente inteiro, pela bandeira de igualdade que estendeu no seu primeiro momento. Pois "Viagem ao Crepúsculo", o novo livro do escritor pernambucano Samarone Lima, o homem do blogue "Estuário", traz o testemunho do mais isento dos observadores.
Isento à maneira do autor, claro. Não se trata daquela tão falsa objetividade que já serviu para esconder tanta desonestidade intelectual. Quem lê Samarone no blogue sabe que o autor não é nem de longe uma daquelas hienas direitistas que infestam a própria internet onde se abrigam o "Estuário" e este próprio "Sopão". Por isso mesmo, o choque que a realidade cubana atual provoca no autor de "Viagem ao Crepúsculo" surge coberta por uma camada de credibilidade rara quando se trata de relatos sobre a ilha de Fidel. Samarone passou semanas em Cuba e, desde o momento em que pisou no país, foi confrontado com um cotidiano capaz de provocar a mais incômoda perplexidade. Política e pessoal. Viajou levando canetas bic para distribuir com os cubanos afetados pelo embargo e ao chegar lá descobriu que esse mimo é bem-vindo, sim, mas há falta de coisa muito mais básica, como leite, por exemplo.
Samarone fotografa com seu antidiário de viagem o que restou do sonho revolucionário, destruído pelo fim do bloco socialista que dava sustentação econômica à ilha, pelo embargo econômico, pela estrutura de poder que qualquer tipo de sistema político - por mais alternativo que seja - sempre acaba gerando e por um certo tipo de corrupção de sobrevivência - bem diferente das grandes negociatas brasileiras - que tudo isso acabou provocando. Mas o escritor não dá aula, nem se preocupa em fixar o quadro das pequenas mazelas diárias num panorama histórico geral do que houve de 1959 pra cá. Ele se limita a observar, conversar e, sobretudo, ouvir. E o simples registro do que acontece diante de seus olhos ergue um painel barulhento sobre a falência de um projeto, quanto mais silenciosos são os seus sinais cotidianos, como a velhinha que reclama baixinho da fome nos dias de frio, quando a comida liberada pelo regime não é suficiente; a mulher que se desespera quando não tem mercadorias como frango e leite para revender no seu mercado negro caseiro; e a garotada dos grupos culturais que fuma maconha às escondidas para protestar contra a obrigação de estar presentes em grandes atos do governo.
O silêncio é o mandamento número um. E aqui o livro de Samarone ganha um peso a mais, por usar de um recurso à altura do relato de que procura dar conta. Em "Viagem ao Crepúsculo", Samarone Lima exercita o que chama, a certa altura, de "jornalismo sem perguntas": ele conhece pessoas, faz amizade naturalmente com elas e nem precisa indagar sobre os fatos que o deixam perplexo. Os próprios cubanos, cativados pelo jeito manso e pela curiosidade aparentemente contida de Samarone, contam tudo sobre a vida real na ilha hoje. A sabedoria do autor é se comportar como alguém que está vivendo, ainda que por uma curta temporada, aquela mesma realidade - sem a impaciência típica do jornalista que não resistiria a solapar com perguntas erradas a visão de algo que não precisa de frases feitas para se mostrar como de fato é. E é assim que Samarone desvenda, qual um detetive cabreiro, a rede de "corrupção de sobrevivência" que faz sumir o frango dos refeitórios de uma universidade - o mesmo frango que havia visto antes na casa da cubana que o acolheu e que sobrevive da revenda ilegal de mercadorias vindas não se sabe de onde.
Este pequeno fato da vida cubana - a rota do frango que some da universiade e reaparece clandestinamente à venda repartido em pequenos saquinhos com se fora uma espécie de droga - se insere no quadro geral da maluca e perversa economia cubana. O relato humano, sensível e muitas vezes deprimido mesmo que faz Samarone define as linhas dessa economia onde a moeda nacional, o peso cubano, vale imensamente menos do que o que chama de "peso conversible", a moeda meio-termo entre o dinheiro que recebem os cubanos comuns e aquela manuseada pelos turistas cada vez mais presentes na ilha. Há uma terceira moeda, e você sabe qual é, bagunçando ainda mais essa economia onde tudo custa muito caro para o cubano - a não ser que ele tenha família no exterior que lhe envie as tais verdinhas. A outra fonte de dólares é a prostituição, um derradeiro subproduto da falência desse projeto, que Samarone também dá conta de mostrar como se processa nos becos mal iluminados do crepúsculo cubano.
Mas aqui o comentário já está cedendo ao impulso de reproduzir o que há no livro - e não apenas antecipar o que se pode esperar dele e da forma como aborda esse tema tão controverso. Os defensores da revolução também estão lá, mas a honestidade do relato não deixa dúvidas quanto à potência das críticas de um lado e de outro - aqueles que ainda acreditam no regime, especialmente os mais velhos, e os muitos que não vêem a hora de haver uma transição muito esperada. Por tudo isso, é dolorosa a leitura de "Viagem ao Crepúsculo": pelo que contém de desmonte de uma utopia, por menos iludido que seja o leitor idealista. Mas, se de fato temos pouca chance de ter acesso a relatos isentos sobre o crepúsculo cubano, também é verdade que os cubanos têm menos ainda oportunidade ver o restante do mundo como ele é. Por lá, o controle dos órgãos de comunicação faz com que se acredite que a Venezuela é uma potência. Se quem diz isso é um cara como Samarone, a gente se rende, lamenta e acredita.
Se é assim, como dizia John Lennon, "o sonho acabou". Só nos resta completar com outra frase, esta de alguém que não tem nada a ver com esse assunto, o diretor de televisão Daniel Filho, que já disse uma vez, ao definir o conceito do seriado televisivo "Ciranda Ciradinha": "O sonho acabou, mas papai não tem razão."
Isento à maneira do autor, claro. Não se trata daquela tão falsa objetividade que já serviu para esconder tanta desonestidade intelectual. Quem lê Samarone no blogue sabe que o autor não é nem de longe uma daquelas hienas direitistas que infestam a própria internet onde se abrigam o "Estuário" e este próprio "Sopão". Por isso mesmo, o choque que a realidade cubana atual provoca no autor de "Viagem ao Crepúsculo" surge coberta por uma camada de credibilidade rara quando se trata de relatos sobre a ilha de Fidel. Samarone passou semanas em Cuba e, desde o momento em que pisou no país, foi confrontado com um cotidiano capaz de provocar a mais incômoda perplexidade. Política e pessoal. Viajou levando canetas bic para distribuir com os cubanos afetados pelo embargo e ao chegar lá descobriu que esse mimo é bem-vindo, sim, mas há falta de coisa muito mais básica, como leite, por exemplo.
Samarone fotografa com seu antidiário de viagem o que restou do sonho revolucionário, destruído pelo fim do bloco socialista que dava sustentação econômica à ilha, pelo embargo econômico, pela estrutura de poder que qualquer tipo de sistema político - por mais alternativo que seja - sempre acaba gerando e por um certo tipo de corrupção de sobrevivência - bem diferente das grandes negociatas brasileiras - que tudo isso acabou provocando. Mas o escritor não dá aula, nem se preocupa em fixar o quadro das pequenas mazelas diárias num panorama histórico geral do que houve de 1959 pra cá. Ele se limita a observar, conversar e, sobretudo, ouvir. E o simples registro do que acontece diante de seus olhos ergue um painel barulhento sobre a falência de um projeto, quanto mais silenciosos são os seus sinais cotidianos, como a velhinha que reclama baixinho da fome nos dias de frio, quando a comida liberada pelo regime não é suficiente; a mulher que se desespera quando não tem mercadorias como frango e leite para revender no seu mercado negro caseiro; e a garotada dos grupos culturais que fuma maconha às escondidas para protestar contra a obrigação de estar presentes em grandes atos do governo.
O silêncio é o mandamento número um. E aqui o livro de Samarone ganha um peso a mais, por usar de um recurso à altura do relato de que procura dar conta. Em "Viagem ao Crepúsculo", Samarone Lima exercita o que chama, a certa altura, de "jornalismo sem perguntas": ele conhece pessoas, faz amizade naturalmente com elas e nem precisa indagar sobre os fatos que o deixam perplexo. Os próprios cubanos, cativados pelo jeito manso e pela curiosidade aparentemente contida de Samarone, contam tudo sobre a vida real na ilha hoje. A sabedoria do autor é se comportar como alguém que está vivendo, ainda que por uma curta temporada, aquela mesma realidade - sem a impaciência típica do jornalista que não resistiria a solapar com perguntas erradas a visão de algo que não precisa de frases feitas para se mostrar como de fato é. E é assim que Samarone desvenda, qual um detetive cabreiro, a rede de "corrupção de sobrevivência" que faz sumir o frango dos refeitórios de uma universidade - o mesmo frango que havia visto antes na casa da cubana que o acolheu e que sobrevive da revenda ilegal de mercadorias vindas não se sabe de onde.
Este pequeno fato da vida cubana - a rota do frango que some da universiade e reaparece clandestinamente à venda repartido em pequenos saquinhos com se fora uma espécie de droga - se insere no quadro geral da maluca e perversa economia cubana. O relato humano, sensível e muitas vezes deprimido mesmo que faz Samarone define as linhas dessa economia onde a moeda nacional, o peso cubano, vale imensamente menos do que o que chama de "peso conversible", a moeda meio-termo entre o dinheiro que recebem os cubanos comuns e aquela manuseada pelos turistas cada vez mais presentes na ilha. Há uma terceira moeda, e você sabe qual é, bagunçando ainda mais essa economia onde tudo custa muito caro para o cubano - a não ser que ele tenha família no exterior que lhe envie as tais verdinhas. A outra fonte de dólares é a prostituição, um derradeiro subproduto da falência desse projeto, que Samarone também dá conta de mostrar como se processa nos becos mal iluminados do crepúsculo cubano.
Mas aqui o comentário já está cedendo ao impulso de reproduzir o que há no livro - e não apenas antecipar o que se pode esperar dele e da forma como aborda esse tema tão controverso. Os defensores da revolução também estão lá, mas a honestidade do relato não deixa dúvidas quanto à potência das críticas de um lado e de outro - aqueles que ainda acreditam no regime, especialmente os mais velhos, e os muitos que não vêem a hora de haver uma transição muito esperada. Por tudo isso, é dolorosa a leitura de "Viagem ao Crepúsculo": pelo que contém de desmonte de uma utopia, por menos iludido que seja o leitor idealista. Mas, se de fato temos pouca chance de ter acesso a relatos isentos sobre o crepúsculo cubano, também é verdade que os cubanos têm menos ainda oportunidade ver o restante do mundo como ele é. Por lá, o controle dos órgãos de comunicação faz com que se acredite que a Venezuela é uma potência. Se quem diz isso é um cara como Samarone, a gente se rende, lamenta e acredita.
Se é assim, como dizia John Lennon, "o sonho acabou". Só nos resta completar com outra frase, esta de alguém que não tem nada a ver com esse assunto, o diretor de televisão Daniel Filho, que já disse uma vez, ao definir o conceito do seriado televisivo "Ciranda Ciradinha": "O sonho acabou, mas papai não tem razão."
2 comentários:
Camarada, obrigado pelo belo texto sobre o livro.
Um abraço,
Samarone
Esse livro já chegou por aqui, Sebastião? Como faço para encontrá-lo? Já estou arrependido do tempo dispensado com A Ilha, de Fernando Morais (rs).
Abraço!
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