Não é exatamente a última cena do filme. É mais uma sequência de imagens usadas como plataforma para os créditos finais. Mas acaba sendo uma síntese geral de boa parte do que se viu nas duas horas anteriores da projeção de "Intrigas de Estado", o filme de Kevin Macdonald ("O Último Rei da Escócia") estrelado por Russell Crowe. Assistindo a essa cena derradeira, não tive como não rodar no meu particular cineminha mental um filme só meu, que aqui projeto para todo mundo a propósito de falar um pouco sobre a decisão de ontem do Supremo Tribunal Federal, que acabou com a exigência do diploma para o exercício da profissão de jornalista.
Primeiro, o meu filme que é, em tudo, muito parecido com a sequencia final de "Intriga de Estado": aqui estou eu, um jornalista não autorizado por lei na oficina do jornal "Tribuna do Norte" que, a despeito de considerado chapa branca em função da notória propriedade (a família Alves, no Rio Grande do Norte), para mim foi como uma espécie de escola de fato e de direito sobre os (muitos) limites do jornalismo e (igualmente tantos) oportunos canais de expressão da realidade que esse mesmo jornalismo permite. Mas voltemos ao cenário da ação: e aqui estou eu, na oficina da Tribuna, em 1988, circulando entre o chefe dos gráficos, Baltazar, e seus comandados, uma turma animada e amiga, entre máquinas de fotocomposição, chapas metálicas e gigantescas rotativas de onde logo sairia a edição do dia seguinte.
Muito provavelmente, estamos num início de tarde de sábado, momento em que a fotocomposição já preparou aquelas tirinhas de notícias impressas, o montador já colou tudo numa grande folha em branco do tamanho da página do jornal, deixando espaço para os clichês (que são as fotos e imagens em geral) e o responsável pelo fotolito (uma espécie de foto em negativo da página do jornal) já está apagando falhas que passaram por essas etapas iniciais do processo. Agora, vem o momento de gravar a imagem do fotolito na chapa - que é isso mesmo, uma grande chapa metálica do tamanho da página do jornal (afinal, tudo isso é a descrição de como se imprime cada uma delas) - de maneira a se ter uma espécie de matriz que será implantada nas rotativas e, a partir dela, num processo industrial de contato de tintas e emulsões, será impresso o jornal do dia seguinte. Uma edição dominical e, como tal, mais volumosa, colorida e trabalhosa de se preparar. Mas também muito mais interessante.
Tirando as etapas do processo que a informatização subtraiu, como a fotocomposição, é isso o que vemos no final de "Intrigas de Estado". E rever aquele processo me lançou de volta a 1988, num tempo em que, para substituir um profissional mais experiente que estava de férias, fui designado como secretário gráfico interino nas oficinas da Tribuna. Durante um mês, avancei madrugadas adentro lá nas dependências abaixo da redação, indo pra casa na kombi do jornal junto com o pessoal da área, os últimos a sair (e com o supremo prazer de levar comigo, na mão, o jornal do dia seguinte prontinho e ainda quente do contato com as rotativas), conquistando um conhecimento do processo de se fazer um jornal dos mais enriquecedores. Uma pós-graduação na escola da Tribuna, que a tantos outros formou.
O curioso é que, nesta época, eu era de fato ainda um estudante de Jornalismo, mas trabalhava como repórter normalmente. Era uma prática da época, uma forma de pirataria que proporcionou formação melhor não só pra mim mas para muito mais gente. Havia quem me criticasse por isso, mas a sede de exercer essa profissão ignorava as piadas e os gracejos. Mas éramos, eu e uns outros, de fato, ilegais - de um tipo de ilegalidade permitida como tantas outros de que o Brasil é um exemplo. Ilegalidade, no entanto, provisória - e com data marcada para acabar, que era quando da conclusão do curso e da consequente concessão do registro profissional pelo Ministério do Trabalho que, por sinal, ficava na mesma rua da Tribuna, ali na Duque de Caxias, coração da Ribeira Velha de Guerra.
Se fosse hoje, e já chego à decisão de ontem do STF, de um dia para o outro teríamos deixado de ser ilegais - sem mesmo precisar concluir o curso de Comunicação na UFRN. Pois, hoje, um dia depois da sentença do Supremo, eu lhes digo: prefiro ter o orgulho pretérito de ter sido jornalista ilegal e provisório um dia do que tirar essa mácula pedagógica do meu humilde currículo. Não reconheço valor na decisão de ontem, não vejo como a extinção da exigência do diploma vá ampliar o alcance e a responsabilidade do jornalismo praticado atualmente no país que, por sinal, já não é dos melhores (ironicamente, a mesma internet que precariza a primeira notícia quase chegando ao ponto da desinformação é a mesma que nos oferece canais alternativos que colocam em xeque a imprensa dominante). Apesar de assinar um blogue (de um tipo muito informal e particular de jornalismo, nem preciso dizer) chamado "Sopão do Tião", não me vejo como o equivalente a um bom cozinheiro que domina o que seria mera técnica apimentada por excepcionais talentos.
"Intrigas de Estado", só pra voltar ao filme, é uma produção que promete, sugere e tangencia mas não vai fundo na discussão sobre as vantagens do "velho jornalismo" diante dos vícios do jornalismo on line. Levanta a poeira do debate, mas a abandona suspensa no ar - porque precisa de tempo narrativo para se desincumbir da trama que tem para contar. Como foi feito com base numa minissérie de tevê que durou dias, imagino que o melhor, para quem pode e tem acesso, é assistir à própria minissérie que, essa sim deve ter tido tempo de se estender no assunto que se propõe a confrontar. Mas aquela sequencia final, com um recado visual sobre a necessidade da permanência de valores jornalísticos que o tempo e a tradição tiveram o bom senso de estabelecer, é um contraponto e tanto em cartaz nas salas de cinema para a decisão da noite passada nos salões da instância máxima da Justiça brasileira.
P.S.: Como todo acontecimento comporta mais facetas do que sugere a primeira impressão, não deixa de ser curioso assistir ao espanto de colegas que, intoxicados por uma autoimagem exarcebada de soberba e poder, caem boquiabertos diante do prognóstico de Gilmar Mendes, o ministro do Supremo a quem, um segundo atrás, cultuavam como horizonte de esclarecimento político. Eis Gilmar Mendes, mais uma vez mostrando a cara para aqueles que, hipnotizados pelo intelectualismo mais encruado, nunca a quiseram ver.
P.S 2: A propósito, o melhor filme sobre jornalismo, suas possibilidades e seus limites, ainda é "O Informante", como o mesmo Russell Crowe divindindo a cena com Al Pacino, os dois sob a direção de Michael Mann. Nem se passa, na verdade, na redação de um jornal. Tampouco nos bastidores de um telejornal. Conta uma história sobre pressões empresariais em torno de uma reportagem do programa "60 Minutos". Deveria ser exibido no primeiro dia de aula de todos os cursos de Comunicação do mundo.
3 comentários:
Por falar em filme, aquele Ascensor para o Cadafalso, que passou no CCBB um tempo atrás, saiu em DVD.
Sobre o diploma, não acredito que a decisão de ontem vá melhorar, ou piorar o jornalismo. Sempre houve ilegais nas redações, muitos deles são editores de cadernos importantes e conselheiros editoriais de grandes jornais. O que muda? Ainda não percebi ao certo.
Tião,
Presumo que você não conheça "A Montanha dos Sete Abutres", de Wilder, com Kirk Douglas. Dos filmes que conheço, é, para mim, o melhor sobre a imprensa escrita. Um abraço.
SuperTião contra o baixo astral!
Valeu pela lembrança de O Informante! Também gosto muito de Bom Dia, Boa Noite, com o bonitão do Clooney.
Avisa pro Sobreira que gostar de filmes recentes não significa desconhecer os clássicos.
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