sexta-feira, 5 de junho de 2009

O Taos de Gustavo


“Por via das certezas / mantenha as dúvidas”, recomenda Gustavo de Castro em um dos poemas de “Taos”, o livro inédito que a editora Casa das Musas deve publicar em breve. Esse pequeno poema instantâneo, do tipo que dissolve idéias como quem despedaça o sonrisal dos conceitos estabelecidos chiando de prazer verbo-sensorial no copo simbólico da poesia, é bem uma amostra do que se poderá ler nas tantas páginas do livro. Melhor dizendo, dos livros, porque “Taos” está organizado como uma reunião de seis volumes, cada qual optando por um formato para conjugar em poesia as idéias estético-lúdico-filosóficas de Gustavo. Então, é como se o livro, volumoso e vaporoso ao mesmo tempo (volumoso pela aparência física e vaporoso pela natureza do conteúdo), fosse um grande almanaque em versos, às vezes quase em prosa, sobre o tudo, o nada e qualquer tipo de matéria que porventura houver, volumosa ou vaporosa, entre esses dois conceitos.

Em qualquer dos livros reunidos em “Taos”, Gustavo pratica uma espécie mui deleitosa de zen-filosofia poética. Vale-se recorrentemente de verbos no imperativo, como na poesia de outrora – cultiva, passa, esfrega, veste, solta-te – mas emprega tal recurso num contexto absolutamente desprovido de qualquer traço de traça. Outro mecanismo sempre à mão do poeta é o aforismo veloz, a anti-afirmação que nega o caráter peremptório dos ditos, resultando em desditos como aqueles praticados por Karl Kraus, mas naturalmente sem a misoginia do provocador alemão. O resultado é uma poesia proverbial dotada de uma lente que inverte impressões, bagunça conceitos, revê idéias estabelecidas. E o faz de uma maneira muito menos cerebral do que a frase anterior pode dar a entender. O “Taos” de Gustavo, que já cai nas nossas mãos com esse título auto-sugestivo, é tão instigante que quase freqüenta a cidade da auto-ajuda. Sendo filosófico por natureza, não haveria como não fazê-lo. O fato é que se trata de leitura quase terapêutica, para quem soltar as pedras e se entregar ao pedregal orientalizado do poeta. Aquilo que está inscrito em “por via das certezas / mantenha as dúvidas”.

Também há, de ponta a ponta, uma certa atmosfera natural em “Taos”. Como um secreto componente ecológico aqui entendido não como bandeira política mas como natureza poética. O mundo natural, com suas floradas e rarefações, fala por meio do poeta e o poeta dele se vale para falar, como uma relação entre muro velho e trepadeira faminta, pisando a trilha aberta pela culto à mitologia primeira do homem. Um ar grego-romano, um eco dos cânticos, dos cânticos, dos cânticos. Uma leve brisa shakespereana, embalando frases com laços primaveris, ramos seculares recobrindo muito lentamente pedras poéticas lapidadas pela voz do tempo. Flores do campo e tufos do sertão crescendo ao léu entre uma sentença e outra. Neste sentido, “Taos” não é só um livro de poesias – é um jardim, onde quem tem olhos para ver e mãos livres de qualquer tipo de carga vai se sentir muito bem. Pensar não implica necessariamente em rodear-se de sombras, embora elas existam – como se diz das bruxas.

Uma delícia especial é o livro “Guia impreciso para perplexos”, a parte de “Taos” que pratica uma prosa poética de curta duração e intensidade máxima. Gustavo coloca em prática um conceito que aprendeu com seu mestre absoluto, Ítalo Calvino, objeto de seus estudos e trampolim de seus saltos intelectuais. É bem conhecida a pregação visionária de Calvino, que preconizou o advento de uma nova literatura, feita de narrativas curtas, mas intensas. Gustavo põe-se a praticar a receita e o faz dando humanidade a conceitos que os homens cultivam sem muito pensar sobre o que, de fato, representam. Assim é que surgem os pequenos contos estrelados por uma mulher chamada Solidão ou uma dupla formada por Vitória e Fracasso. “Solidão gosta de televisão”, perfila o poeta. “Vitória e Fracasso, dois enganos”, prossegue. “Ar gosta de respirar”, sentencia. “Fim não sabe acabar namoro”, diverte-se. E esses são apenas quatro exemplos de uma fauna humanizada que ocupa um livro inteiro. Coloque um rosto, uma circunstância ou um dilema diante de uma dessas criaturas – Preguiça, Chuva, Vida - e (re)veja como nos comportamos nós, humanos de fato, diante deles. Terapêutico sim, mas desconcertante como convém à boa poesia.
*Na foto que ilustra o comentário, nada mais coerente do que um poente de São Miguel (RN).

Um comentário:

Moacy Cirne disse...

Oi, Tião,
você está marcando presença no
Balaio.

Um abraço.