terça-feira, 21 de abril de 2009
Brasília pelo apóstolo Behr
A mitologia de Brasília como uma cidade marcada pela flora do cerrado, por eixos que atravessam o coração de habitantes solitários e pelo sumo de um tédio perplexo com uma urbanidade ainda por construir deve muito ao poeta Nicolas Behr. Essa semana, esperando num consultório médico, viajei pela poesia desse moço que vem dos tempos da literatura mimeografada e vendida pelo próprio autor em bares que o progresso fechou. Hoje, Nicolas Behr é um senhor com cara de poeta clássico. Mas insiste em procurar novos terrenos onde apregoar suas sentenças urbano-poéticas inspiradas na aventura cotidiana de se viver na capital do país.
Hoje, Nicolas Behr finca a raiz do seus versos numa cruzada entre a palavra e a natureza, objeto de uma metafísica ecológica bem a propósito dos novos impasses metropolitanos. Brasília mudou, mas nunca deixou de ser uma cidade com um forte panorama rural - algo que muita gente que aqui vive estupidamente rejeita e desvaloriza. O poeta em questão, não - tanto que, fundador de uma ONG ambientalista pioneira nos idos dos 80, ainda hoje lidera colunas urbanas de matropolitanos interessados em explorar os jardins das entrequadras, em aulas ao ar livre com a nomenclatura da flora e o evangelho da preservação possível.
Antes de ser esse cicerone de ipês e sibipirunas, Nicolas Behr foi uma espécie de Paulo Leminski do Planalto e até hoje é possível encontrar mini-antologias dele em balcões de locadoras de DVD ou estabelecimentos similares. É uma poesia de linguagem acessível e musicalidade pop, verde e apaixonada, muito mais para a doçura lírica de Drummond, para o coração rasgado de Vinicius, do que para a faca fria, embora genial, de João Cabral.
É até banal aproveitar o pretexto do aniversário de Brasília para postar um pouco da - por aqui - bastante conhecida poesia de Nicolas Behr, mas o Sopão é uma mesa que tem prazer em oferecer lautas refeições cujos bocados seu cozinheiro eventualmente prove, aprove e celebre. Então, segue, com a ressalva de que, como poesia ligada ao mito pop-urbano fundador da lenda contemporânea de uma cidade, os textos estão crivados por uma visão que nem sempre corresponde ao retrato atual deste lugar. Nada mais mutante do que Brasília - e, no entando, nada mais estereotipado, o leitor há de concordar. Na poesia de Nicolas Behr, há o registro dessas duas faces, a primeira e já despotada de tão repetida (a cidade dos eixos separadores) e a atual, da verdura torta do cerrado que teima, felizmente, em competir com o asfalto.
naquela noite
suzana estava
mais W3
do que nunca
toda eixosa
cheia de L2
suzana,
vai ser superquadra
assim lá na minha cama
(de L2 noves fora W3, 1980)
eu engoli brasília
em paz com a cidade
meu fusca vai por esses eixos,
balões e superquadras, burocraticamente,
carimbando o asfalto
e enviando ofícios de estima
e consideração ao sr. diretor
(de Porque Construí Braxília, 1993)
imagine brasília
não-capital
não-poder
não-brasília
assim é braxília
(de Porque Construí Braxília, 1993)
BRASÍLIA ENIGMÁTICA
brasília, faltam exatos 3.232 dias
para o nosso acerto de contas
me deves um poema
te devo um olhar terno
na beira do paranoá pego um pedaço de pau
entre um pneu velho e um peixe morto
(uma garça por testemunha)
não me reconheces
não te reconheço
(de Viver Deveria Bastar, 2001)
viver é tirar pedras do lugar
recordar é tentar colocá-las de volta
(do poema RIBEIRÃO DO OURO, em Menino Diamantino, 2003)
nas profundezas das florestas
de palavras vivem os poetas,
disfarçados de árvores
e ditongos
se alimentam do nada
e tudo o que
a imaginação
decompõe
....
entendi
o sr. não quer uma árvore
o sr. quer uma
máquina de produzir sombra
....
Flores caem
e ocupam o chão
da manhã
...
A flor do pequi
às vezes
é utilizada
na confeção de poemas
como este
....
Neva areia
sobre as sibipirunas
do setor comercial sul
(é o deserto chegando)
....
Quando eu nasci uma árvore torta
dessas que vive no cerrado
chegou pra mim
e não disse nada
.....
entre a copa e as raízes
eu
tronco, serragem, poema, pó
....
Esmaga o poema na mão
e cheira
identifica o poema
e sente
(De Iniciação à Dendrolatria, 2006)
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Um comentário:
Tenho até hoje o livro que meu pai me deu quando eu era criança - com poemas de Nicolas Behr, lá pelos meus dez anos de idade. Li aquilo tudo me divertindo muito, achando o cara doido e engraçado, mas ao mesmo tempo tão próximo, tão meu vizinho, falando de coisas que eu via todo dia. Isso me emocionou demais (na época só me senti estranha, uma vez que não sabia direito o que era me emocionar). Acho que foi a primeira literatura com a qual eu - menina crescida no meio dos redemoinhos de terra vermelha - me identifiquei na vida.
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