quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

O auto e a política

A idéia era assistir ao auto de Natal promovido e preparado por Diana Fontes, uma figura que tem longa tradição e ótima reputação no mercado das artes da cidade. Mais do que diversão ligeira e encantamento passageiro, um espetáculo de Diana Fontes, com direção de João Marcelino, era garantia certa de alumbramento duradouro para Cecília e Bernardo. Uma promessa de cartão vivo de festa de fim de ano, com a história do nascimento de Cristo embalada em papel especial onde há espaço para toda uma rica simbologia e vasta ilustração sobre o que esta data comporta, muito além da banalidade que ela também abarca. Acontece que, por engano, fui ao espetáculo errado.

Quando vi, estava diante do auto de Natal promovido pela Prefeitura da cidade - aquele mesmo que foi encomendado inicialmente a Clotilde Tavares e, depois, no vai-não-vai que virou a antipolítica cultural da cidade, acabou nas mãos de um jornalista da TV Ponta Negra, algo muito natural na belusconização (bem previsível) que vai tomando conta da política local. Enfim, não havia mais nada a fazer senão assistir ao espetáculo, sabendo de antemão que veria algo bem mastigadinho, com a didática de um comício eleitoral.

De cara, é visível o desperdício, já que a produção em si - falo de luz, som, espaço, coisas que custam dinheiro - estava lá. Mas logo ficou claro que tamanho investimento estaria a serviço de uma abordagem muito pequena de algo que sempre pode ser artisticamente gigante, que é esta invenção teatral chamada auto natalino. Havia um ar de novela das seis no uso de uma família certinha para contar a história de Maria. Nada contra a novela das seis, mas aqui se trata de um pretenso auto de Natal. Havia o uso de telões como um charmoso recurso multimídia, mas isso só fazia reforçar o ar brega-noveleiro da intervenção. Uma coisa meio mexicana, no mal sentido. Havia dança, mas não havia coreografia: a impressão era de ver atores-dançarinos espalhados a esmo pelo palco (e a música, a única peça destoante a se salvar do naufrágio geral, ainda comentava, involuntariamente: "tanta gente à deriva..."). Havia um momento Broadway, com aquela música evocativa dos grandes musicais, mas ficava nisso mesmo - uma citação que se valia de luz e som, que mesmo sem ter estado no corredor do grande espetáculo americano, todo mundo sabe que a Broadway de verdade prima pelo rigor artístico e pela qualidade soberba da dança. Havia também um instante can-can, o que só reforçava a bandalidade geral. Era como se o espetáculo quisesse dar uma "volta do mundo" recorrendo a citações, enquanto contava a história de Maria - e ainda tendo que levantar a emoção do público local; e ainda tendo que fazer bonito para os turistas que foram assistir à apresentação, afinal estávamos diante de um dos principais momentos do "Natal do Brasil".

Quando a gente lembrava disso e via a pobreza rica do auto no palco, chegava a dar uma certa vergonha. Torci secretamente para que não houvesse um só e escasso turista, como diria Nelson Rodrigues, naquela platéia. Porque não seria o "Natal do Brasil", mas o "Mico Natalino do ano". Também fiquei pensando como gente como Henrique Fontes se deixou enredar naquela teia de mediocridade. Henrique é o autor e diretor do "Pobres de Marré", que Kitéria e Titina levaram a vários palcos - este sim um espetáculo de humildade artística feito com dignidade. Valéria, a nossa voz mais instigante, também está lá, com sua turma habitual que tenta extrair algo melhor da sonoridade local criando uma nova música. Só por isso, a trilha sonora é o fator destoante. Mas ainda é muito pouco diante do tatibitate visual que arremata tudo. Enfim, cada um com suas razões - e a gente sabe que um espetáculo dessa natureza é uma produção complexa demais para que alguém tenha controle sobre ele. E como o histórico recente de atropelos que se tem visto na gestão da, digamos, "cultura municipal", há que se encontrar explicações para essas contradições.

Só sei que aqueles números de dança e aqueles diálogos primários me levaram várias vezes a lembrar da apresentação de final de ano da escola da minha filha, Cecilia, que tem 4 anos e acabou de cursar o Jardim 1 de uma pequena e discreta escola administrada por freiras aqui em Brasília. Pois o espetáculo que Cecília e os colegas de outras turmas - estou falando de meninos e meninas até 11 anos de idade - mostraram num teatro da cidade, com o tema da "importância da água", me pareceu muito mais rico, em termos de alegorias, significado e formatação mesmo, do que o auto de Natal da Prefeitura. O show dos garotos da escola de Cecília era mais instigante e sugestivo, justamente porque não apostava em suposta falta de sensibilidade artística por parte da platéia - e veja que a platéia, neste caso, eram os país, avós, tios e tias da garotada no palco. Mas, sem diálogos, só com música e dança, a escola dos meus filhos - até Bernardo, de 2 anos e meio, fez a parte dele no palco - me pareceu muito maior do que aquele caro e pretensioso auto de Natal à minha frente.

Atrás de mim, havia um grupo de garotos usando o auto de Natal da mesma maneira como o cinema deu uso à clássica comédia cinematográfica "Primavera para Hitler". Para quem não lembra, este filme, de Mel Brooks, lançado em 1968, conta a hilariante história de dois golpistas que, para ganhar dinheiro por vias tortas, preparam aquilo que pretendiam que fosse o pior musical de teatro jamais encenado. Ocorre o contrário: o tal espetáculo, de fato, é tão ruim que se torna bom. Acaba virando uma comédia de sucesso, de tão ridículo que se apresnta. E o plano dos golpistas dá com os burros n'água. Lembrei deste filme várias vezes enquanto assistia ao auto de Natal da Prefeitura e me convenci de que as risadas que ouvia atrás de mim, de um grupo de espectadores mais debochado do que a média, vinha dessa semelhança.

Uma prova candente da falta de valor do espetáculo foi a falta de aplauso durante praticamente toda a apresentação. Não havia uma só cena que emocionasse a platéia e a fizesse se doar em aplausos. Porque o formato, os diálogos, a encenação toda era de tal pobreza que não comove o coração de quem a assiste. Somente no final os aplausos vieram, mas bem discretos para o tamanho do público, que lotava todo aquele espaço gigante do anfiteatro do Campus da UFRN. E a montagem toda pede, implora de joelhos, ao final, que o público se dobre em aplausos comovidos. Mas não adianta: não é só com uma música grandiloquente e um texto final megalomaníaco que se constrói a apoteose. Esta é uma sutileza que vai se montando aos poucos, desde o início, injetando verdade no que vai para o palco. O clichê bíblico não converte ninguém. E contrariar isso - que é o que o auto da Prefeitura fez - só mostra que o produtor do espetáculo não acredita na inteligência do público. É coisa de político, não é coisa de artista.

E esta última frase deve encerrar o assunto. Se não tiver esse efeito, só resta lembrar um número não roteirizado ao final do auto, quando os atores, sem que o público entendesse por que naquele momento, vieram à boca do palco e começaram a apontar o indicador na direção da parte superior da platéia. Algo incompreensível até o dia seguinte, quando ficamos sabendo que naquele canto da platéia estava a prefeita - e que aquilo era um protesto pela falta de pagamento daqueles mesmos atores.

Volto para casa, em Brasília, e vejo, lendo os sites e blogues de Natal, que a mesma Prefeitura pagou cachê de R$ 221 mil reais para uma apresentação do Padre Fábio. A desproporção do valor tornou-se motivo de mais uma polêmica na seara cultura do município. E o pagamento foi suspenso.

Não receberam os atores do auto, não recebeu o padre Fábio. E o pior é que, pelo que se comenta em Natal, tem mais gente sem receber, especialmente em serviços de saúde, para sair um pouco do terreno da cultura e do entretenimento. Uma Prefeitura que promete, contrata, anuncia e até promove, mas não paga. Não é bem o que se espera de um "Natal do Brasil".

Um comentário:

Moacy Cirne disse...

Um ótimo 2010
pravocê e os seus,
meu caro.
Texto muito bom,
mas prefiro não entrar em
maiores considerações,
porque o atual presidente da
FUNCARTE me acusou (e também a
Nei Leandro, Paulo de Tarso e
Marize Castro) de escrever um Auto marcado por "extravagâncias literárias", apenas por não seguir/mos
os evangelhos ao pé da letra.

Abraços.