quinta-feira, 17 de dezembro de 2009
O homem que sabia so much
Dá gosto rever "O Homem que Sabia Demais" e reparar como o mestre do suspense capricha na engenharia de cada cena, fazendo das sequencias do filme uma obra-prima de construção narrativa em forma de cinema popular
Se um bom filme se compõe de belas seqüências, “O Homem que Sabia Demais”, um dos inúmeros clássicos populares de Alfred Hitchcock, é mesmo um grande filme. Há, do início ao fim, seqüências tão econômicas quanto reveladoras, como a de abertura; seqüências grandiosas e minunciosamente compostas, como a do concerto onde se dá a tentativa de assassinato; e também seqüências que, embora pareçam comuns, até acessórias no conjunto da história que vai sendo contada, primam pelo caráter sugestivo dos diálogos, com um humor, uma inteligência e uma perspicácia tão tocantes quanto perturbador e divertido é o suspense praticado pelo diretor do filme.
É de se concluir que o que está dito acima sobre “O Homem...” é aplicável a qualquer um dos célebres Hitchcock que, legitimados pelos críticos franceses, deixaram o terreno da diversão popular para subir ao panteão do grande cinema. Mas a questão é que o filme a que eu assisti ontem, com um sorrisão de orelha a orelha, e uma satisfação de neurônio a neurônio, foi este “O Homem que Sabia Demais”. E, nele, é impossível não se deixar tocar por essa engenharia narrativa e audio-visual que faz de cada seqüência um flash de comunicação astuta e inteligente.
Senão, vejamos. Logo na seqüência de abertura, encontramos o quieto e sensato doutor James Stewart ao lado de sua americaníssima esposa Doris Day e do filho Hank, o garoto que será um dos motores do suspense entrevisto. A cena inteira se passa dentro do ônibus e, apenas com base nos diálogos e no que acontece dentro dele ficamos sabendo que: 1) o doutor Stewart é um médico em férias com a família no Marrocos, onde acaba de chegar (a viagem é do aeroporto ao hotel); 2) Doris Day, bem a propósito, é a esposa que largou a carreira de cantora para casar com o médico do interior; e 3) Stewart aproveitou um congresso em Paris para dar uma esticada ao Marrocos, onde esteve durante a guerra. De cara, o roteiro e seu resultado filmado e montado estabelecem uma empatia entre o espectador e o filho de Stewart e Doris – o garoto é curioso, inquieto e algo precoce, cheio de tiradas inesperadas quando vindas de uma criança da idade dele. O menino vai caminhar no ônibus em movimento e um tranco do motorista lhe retira o equilíbrio – ao cair, ele arranca sem querer o pano que cobre a boca de uma marroquina e cria uma confusão a bordo. “O Islã tolera poucos acidentes”, comenta Bernard, o estranho que aproveita o episódio para se aproximar da família americana.
A cena continua, sempre dentro do ônibus, e dela absorvemos, à base de diálogos (e também do olhar de Doris, que revelou-se excelente atriz de cinema), o mistério de Bernard (que pergunta muito sobre a família mas não revela nada sobre si mesmo), a desconfiança da esposa, e a negligência do marido, o homem comum doutor Stewart que, mais tarde, como para compensar esse pouco caso, terá que se desdobrar para localizar o filho seqüestrado. Além do caráter dos personagens, a cena também explicita o estranhamento cultural existente entre a família americana e o cenário muçulmano marroquino. E mistura tudo quanto, depois de Bernard explicar que é um ofensa no local as mulheres deixarem a boca à mostra, o garoto Hank graceja, em comentário de filho de médico: “Elas se alimentam por via intravenosa?”
Adiante, em uma seqüência pequena mas não menos bem iniciada e finalizada, Doris chama a atenção de Stewart para o fato de eles estarem sendo espionados – desconfiança levantada com o comportamento de Bernard no ônibus. Doutor Stewart desdenha e encerra a cena com uma frase irônica: “Você está é com inveja porque ele não perguntou nada sobre você”. Daqui a pouco vamos entender melhor o comentário, quando ficar claro que Doris abandonou uma carreira promissora para virar dona de casa – e esta tensão adormecida entre o casal será um elemento a mais na confecção do suspense. Outro final divertido porquanto espirituoso é o da cena do restaurante, quando Stewart perde a paciência e agarra a comida com as duas mãos, contrariando a etiqueta local e levando uma repreensão do que seria o garçom.
Mas a grande cena, daquelas que já nascem clássicas, dá-se quase no final do filme – na verdade, o seu clímax, que é o momento da tentativa de assassinato no teatro, muito mais do que o resgate do garoto na embaixada. Hitchcock mostra-se um diretor soberbo, sem ser hermético. Arma uma extensa e meticulosa seqüência planos gerais e particulares, misturando closes do rosto ansioso de Doris Day com os vários instrumentos da orquestra, usando a música como elemento de expectativa, aproximando-se tomada a após tomada dos símbalos e do músico que executará o seu toque, num assombroso e espetacular crescendo de suspense visual. Para quem não viu ou não lembra do filme, é no momento em que os símbalos são tocados, precisamente naquele momento, que o assassino de aluguel vai disparar o tiro no peito do primeiro-ministro britânico. O roteiro de John Michael Hayes e a direção de Hitchcock conduzem tudo, de Marrocos a Londres, para este momento singular, onde o filme praticamente se resolve e naturalmente se amplifica e se define. Até porque a seqüência que resta, a do resgate do garoto seqüestrado, fica menor na tela, escorrendo menos facilmente pelos olhos do espectador – o que não é de se estranhar, pois o que quer que viesse após aquele grande momento do concerto teria que ficar em desvantagem.
Há ainda outros pontos menores, mas não menos interessantes. Como o contraste visual entre aquela Londres de tijolinhos e aquela Marrakech de trapos – e, em ambas, o mestre do suspense sabe como extrair sinais de mistério. Veja como um beco londrino, aquele que leva ao laboratório do empalhador, inspira tanta desconfiança quanto as vielas nos mercados marroquinos. E a ironia do discurso do falso sacerdote na igreja, que anuncia que falará sobre o valor da adversidade na vida das pessoas diante de um casal enregelado pela busca do filho que possivelmente está escondido naquele mesmo local? Hitch, se vê, é também um humorista, que sabe dosar o suspense com respiros de alívio contido. Táticas de quem domina, mais que o suspense, a matéria mais difusa do entretenimento mais certeiro, porque vale-se da inteligência do espectador.
P.S: Ganhei dos meus compradres Renato e Ana uma caixa com sete filmes de Hitchcock. Pense num presente de fim de ano festejado... De maneira que não estranhem se daqui por diante o SOPÃO volta e meia disparar uns comentários sobre o grande cinema do mestre do suspense e do entretenimento inteligente.
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2 comentários:
belo presente dos seus compadres, sebá. adoro este filme. e, engraçado, pouco mais de um mês revi o dito, peguei na locadora pra pedro ver (junto com psicose). mas o filme que mais gosto dele é vertigo (um corpo que cai). filmaço! beijins.
Tião,
Agradeço pelos votos de um feliz 2010, que sei que são sinceros. E retribuo-os com a mesma sinceridade, extensivos aos seus entes queridos. Um grande abraço.
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