quarta-feira, 15 de julho de 2009

Os desertos de Zurlini


O cinema de Valerio Zurlini lembra muito o texto de José Saramago. O cineasta italiano faz em "O Deseto dos Tártaros" alguma coisa muito similar, em estética, atmosfera e metáfora, ao que o escritor português realiza em "A Jangada de Pedra". Na literatura de Saramago, um cataclisma faz a Península Ibérica se separar fisicamente do restante da Europa, tornando-se um pedaço de continente boiando à deriva no Atlântico. O que o escritor extrai dessa situação é toda uma fantasia literária que perfila europeus e ibéricos, seus choques mútuos e suas afinidades recíprocas, num estudo realista e perturbador, mas ao mesmo tempo lírico, dos povos de Portugal e Espanha - e da forma como se vêem e são vistos, entre si e pelas demais nações européias.


No filme de Zurlini, um império sem nome, descrito com a subjetividade que favorece a identificação, cerra suas fileiras de defesa em uma fortaleza no deserto, constatemente de prontidão para um ataque sempre iminente - mas igualmente impreciso - de um inimigo desconhecido - e por isso mesmo dado como bárbaro, não-civilizado. É o cinema falando sobre a Europa e seus fantasmas, a civilização branca e ocidental sempre de prontidão ante a ameaça do desconhecido que vem de outra ordem, uma cultura diversa e que não merece esse nome. E em nome desse temor, desenvolve-se uma hierarquia e uma outra cultura, de ordem burocrático-militar, regida cada vez mais pelar armadilhas de seus próprios códigos, com tudo o que isso implica em contradições e absurdos.


"O Deserto dos Tártaros" tem paisagens impressionantes, um cheirinho de épico (o que não é nem pretende ser) e um elenco estelar para a época em que foi feito - estão lá Max Von Sydow, Giuliano Gemma e Phillippe Noiret. Ou seja: tem todo o cartaz dos grandes "filmes de produtor" daquele momento da cinetografia mundial. Mas toma tudo isso e conduz todos os elementos para a construção do que parece mais uma daquelas peças do teatro do absurdo, do tipo que coloca um rinoceronte em cena para fazer a platéia acordar do seu habitual interlúdio digestivo tantas vezes disfarçado de obra de arte. É um filme magnífico sobre o nada, um espetáculo de sutilezas, uma ópera grandiloquente sobre os mais mesquinhos sentimentos do homem articulado em pátrias e nações.


Quem conseguir uma cópia em DVD - que existem, mas só nas lojas e locadoras que vão mais fundo nos catálogos - vai querer ver mais. E o recomendado é "A Primeira Noite de Tranquilidade", uma bela sonata visual sobre o fim de todas as utopias feita muito antes que todos os muros globais viessem ao chão. É Alain Delon perdido no mundo, bêbado de desilusão, numa experiência existencialista filmada com câmeras que sugerem tintas nubladas e pincéis velhos, mas exatos em sua subjetividade maltratada pelos tempos.

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