quarta-feira, 1 de outubro de 2008

A Crise

Eram três da tarde dessa segunda-feira, 29 de setembro, quanto ela saltou a janela da minha casa e, sem que nenhum vizinho percebesse, invadiu meu sacrossanto lar. Uma vez lá dentro, encheu um saco enorme – desses de ladrão tipo irmãos Metralhas – com meus valiosos eletroeletrônicos, dólares falsos, mercadorias made in China e centenas de providenciais bobinas de DVDs virgens. Suja, feia e ambiciosa, ela espalhou por todos os cômodos um mau cheiro nauseabundo. Pichou as paredes límpidas dos meus aposentos com frases do tipo "Entendeu, otário?", gramaticalmente corretíssimas com o uso da inicial maiúscula e a providencial separação entre verbo e vocativo, indício marcante de que ela continua sendo uma criatura muito superior e preparada.

À noite, quanto cheguei em casa exausto do trabalho, passei a chave na porta – sou sozinho, não sei por que sou incapaz de dividir a casa ou o que quer que seja com outra pessoa, ainda que seja uma pessoa igualzinha a mim – e, surpresa! Lá estava ela, abancada na poltrona que mandei projetar especialmente para as minhas medidas. Desavergonhada, de pernas abertas esticadas para o alto, comendo como uma porca faminta minhas pipocas de microondas e embebedando-se com minhas bebidas energéticas enquanto pulava de canal em canal entediada com a bosta da programação. Ensaiei um protesto mas, antes de abrir a boca em impropérios, lembrei assim por uma fração de segundos que não adiava espernear. Por que expulsá-la da minha poltrona personalizada se a esta altura eu já nem sei se ela – a poltrona – ainda me pertence? E o que dizer das pipocas, das bebidas? Se o mais importante, a casa, hipotecada, naturalmente, fugiu das minhas mãos e dos meus bolsos, eu ia dizer o quê?

E assim, não me restou nada além de tentar estabelecer uma convivência mínima – e, tanto quanto possível, civilizada, com a tal da Crise. Hoje de manhã ela trouxe as amigas – a Carestia (nunca vi moça mais cu doce), a Decadência (esnobe como ela só), e a pior de todas, uma tal de Ansiedade. Pense numa mulher de lhe tirar o juízo: é daquelas que falam sem parar, emendando um assunto no outro. Se você disser que tem um parente anão que canta igualzinho ao Julio Iglesias e ainda por cima é casado com uma mulher muda porém sensual como Maddona, pode ter certeza de que Ansiedade vai arranjar um caso parecido na família dela para lhe contar também. Para o almoço, a Crise, que já descobri ser uma pessoa muito coerente, preparou uns sanduíches de mortadela e discursou enfastiada dizendo que era pra todo mundo comer como se fosse caviar.

Isso tudo foi ontem. Hoje, e notem que não foi preciso mais do que um dia para isso acontecer, não é que já estou me acostumando com ela? Se servir como tranqüilizante para o mundo, declaro: diga ao povo que a Crise pode ficar. É perfeitamente possível conviver com ela. Com disse Marta, se a presença da Crise – aérea ou terrestre mesmo – é inevitável, relaxe e goze. Por falar nisso, convivendo assim sob o mesmo teto, posso dizer que a Crise nem é tão feia quanto parece. Pensando bem, até que ela tem umas perninhas...

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