segunda-feira, 24 de novembro de 2008

"Shane" e o ponto de vista de cada um


A leitura de um filme de um ponto de visto algo psicanalítico não é novidade de maneira alguma. De tão comum, é quase um chavão – um formato de resenha, uma forma de fruição da sétima arte. Um exemplo – e dos mais batidos – é "Shane – Os brutos também amam", o mais lacônico dos westens clássicos que, para muita gente, é, da primeira à última cena, a filmagem da fantasia de um menino. A coação dos criadores de gado que tentam expulsar os agricultores teimosos, as casas incendiadas, as brigas no bar que antecedem os tiros e o aparecimento do pistoleiro defensor da justiça e cheio de mistérios, tudo isso seria a projeção da fantasia daquele menino, little Joe.

No final de semana, revi "Shane" duas vezes – uma delas, numa divertida sessão com os comentários do filho e do auxiliar do diretor do filme – e outras duas produções que me fizeram elocubrar um pouco sobre essa história de histórias projetadas pelo inconsciente de seus próprios personagens. Os outros dois filmes, além de "Shane": "Depois de horas", aquela fantasia pop-surreal cheia de deliciosos maneirismos feita por Martin Scorsese", e ""Vestida para matar", a esta sim uma ultrapsicanalítica jornada filmada por Brian de Palma nas gavetas da mente dividida de um psicopata de boa família.

Vistos na ordem em que foram dispostos neste texto, os filmes meio que se puseram a conversar uns com os outros na minha cabeça. Trocaram umas idéias, emprestaram fotogramas uns aos outros, mediram possibilidades e ambições e, desse bate papo instalada no cérebro ansioso do espectador que vos fala, saíram as constatações que seguem, não à guisa de análise, mas a título de diversão mesmo, que a consistência das idéias pode se desfazer com a mesma rapidez com que as platéias atuais esquecem o último filme que viram no cinema.

Então: se "Shane" é, como tantos dizem, a projeção das fantasias de little Joe para tornar seu pai mais corajoso, sua mãe mais feminina, sua realidade menos sufocante e ele mesmo o herói possível dentro dessas circunstâncias todas, arrisco dizer que toda aquela jornada madrugada adentro de "Depois de horas" não passa de um delírio de desejo vivido pelo personagem central, um jornalista semi-yuppie dos anos 80 entediado com a previsibilidade de tudo à sua volta – dos móveis da casa de iluminação clean à redação tipo linha de montagem com estilo onde ele inicia e termina o filme.

O personagem interpretado por Griffin Dunne nunca diz isso textualmente, mas precisa, implora, baba por algumas horas que sejam num ambiente diferente do seu – um mundo sem regras, pleno de riscos mas também de prazeres inesperados. E este mundo, para um cara certinho como ele, só pode ser o underground chique e surreal dos artistas pós-punk do bairro boêmio. O filme inteiro capricha no tratamento visual que exibe placas simples – "bar" – , ruas caprichosamente salpicadas de poças e de luar, ambientes desenhados em cores básicas. Tudo como se fosse uma estridente história em quadrinhos para adultos, num momento em que Scorsese muito se aproxima de um cineasta até então inédito, Quentin Tarantino. E essa aquarela noturna que também muito lembra a atmosfera das telas de Edward Hooper, o esteta do realismo e da solidão americana, o que contribui ainda mais para dar ao filme uma saborosa artificialidade – um clima bretchiano que, ao fim e ao cabo, reforça exatamente aquilo que ele poderia, no todo, ser. O quê? A fantasia que seu personagem principal tanto busca. Tudo aquilo é uma criação de Paul Hackett (Dunne). Eu estou convencido disso. E se você quer se divertir, sugiro que resolva discordar de mim e, para tanto, alugue o DVD e deleite-se com "Depois de horas". A comprovação da tese eu não garanto – a diversão, sim.

O raciocínio é o mesmo no caso de "Vestida para matar", embora a complexidade estilosa e proposital de Brian de Palma – e o próprio tema manifesto do filme – pareça tornar as coisas um pouco mais difíceis. Só que, por baixo daquelas camadas de psicologia barata que De Palma usa para emular o seu, o dele, o nosso ídolo Alfred H., sobra apenas um outro exemplo de personagem vertendo em imagens e sons os seus desejos. E se você pensou que esse personagem que projeta suas expectativas é o psicanalista que – vou ter de cotar o segredo do filme, paciência – vai se revelar um assassino travestido de mulher, errou. Feio. Passou longe.

Pra mim, no caso de "Vestida para matar", aquela trama toda de dupla personalidade, misturado ao caso de uma mulher sexualmente insatisfeita, não passa de uma projeção do filho desta. Duvida? Então reveja o filme e repare na maneira como o garoto, um típico nerd do cinemão americano (cujo intérprete, mais nerd ainda, estrelaria mais tarde "Christine", clássico pop-sujão feito a partir do romance pulp de Stephen King), deixa bem claro o tempo todo que seu pai morreu no Vietnã e que foi criado pelo padrasto. Por que esta fala é significativa dentro dessa tese mirabolante sobre personagens que projetam? Porque expressa o inconformismo do adolescente, sintoma primeiro de sua obsessão e gatilho do mecanismo psicológico que o faz detonar toda a história de sangue, navalhadas, travestis e bossalidades policiais.

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