sábado, 30 de outubro de 2010
Tropa, verdade e tortura
Como muita gente, eu também gostei mais de “Tropa de Elite 2” do que do primeiro filme da série. Ou melhor: do “dois” eu realmente gostei, do “um” até hoje guardo um sentimento que vai da repulsa pura e simples a uma certa necessidade de buscar no filme algo que me tenha escapado.
Explico melhor tudo isso: a primeira exposição do “Tropa um” nos meus fatigados olhos de expectador provocaram quase que um enjôo em meio à barulheira das balas no cinema, ao estilo documental-turbinado que mal lhe deixa tempo para pensar, à ânsia de verter na tela compactada a mais dramática realidade do quadro de insegurança pública do país. Quem quiser ir mais fundo nesta impressão só precisa cafungar aqui mesmo no Sopão e ver o que escrevi na época do primeiro filme. Depois, no bombardeio secundário de tantas análises, deparei com uma entrevista do próprio diretor em que ele, enfim – e somente ele – me levantou a curiosidade de rever o filme sem qualquer farelo de pedras na mão.
O cineasta dizia que o “Tropa um” é apenas e meramente o ponto de vista do policial envolvido naquele mesmíssimo quadro de insegurança pública brasileiro e particularmente carioca. Que o fato de seu personagem se chamar Capitão Nascimento é a mais clara senha de que neste filme ele está apenas mudando o foco de um dos participantes daquele quadro para outro. Sai o Sandro Nascimento do soberbo documentário “Ônibus 147” e entra o policial do Bope que hoje é um herói nacional. Ok, a ficha caiu e lá fui eu ver o “Tropa um” outra vez para conferir a mudança de ângulo do diretor.
Sabe qual foi o problema que encontrei, como um expectador a mais na massa que os dois filmes tem o imenso poder de atrair? É aquela narração em off do capital Nascimento: não há com aquilo não dirigir a sensibilidade da platéia, sobretudo de uma platéia em grande parte de classe média (ao contrário do que se pensa) que deseja uma solução rápida e fácil para o problema da segurança. E o ponto de vista do capitão do Bope – aqui tido como uma figura genérica e não como o Nascimento sozinho – é de defender o extermínio puro e simples. Passa a bala e acabou. Isso fica claro de novo logo no início do “Tropa dois”, quando numa situação-limite o personagem sugere que a direção do presídio deixe os grandes traficantes se matarem uns aos outros lá dentro sem interferência da polícia. Compreendo a motivação, mas não a receita.
Entre a constatação de que não há outro jeito e a decisão do extermínio disfarçado de enfrentamento, fica outro fator que muito incomoda – inclusive no “Tropa dois” – que é a tortura. Esta é uma variante presente nos dois filmes, um elemento subliminar sempre a comentar tudo o que acontece em cada um deles. Não há nem pode haver brasileiro sério que não condene a corrupção policial, o tráfico e seu poder paralelo, a milícia e a deformação que ela constrói sobre o que já começou errado, a política no seu caráter mais eleitoreiro. Mas, antes de tudo isso, existe a tortura. E com a tortura, seja contra o militante político de outrora, contra o meliante comum de hoje em dia, ou contra o mais temido líder de facção criminosa do presente, não se pode concordar.
Pra resumir: é a tortura, em última instância, o que faz dos dois Tropas, o um e o dois, um evento cinematográfico naturalmente incômodo a tanta gente, sobretudo para quem se inscreve no lado esquerdo da arquibancada por onde se analisa o jogo da vida brasileira. Esse mesmo pessoal, dentro os quais eu próprio me inscrevo, tende a simpatizar mais com o “Tropa dois”, como aconteceu comigo, no momento em que o Capitão Nascimento desnuda o “sistema” todo, como ele gosta de denominar, e entra na parte com a qual sempre antipatizamos – a polícia agora alçada à condição de milícia. É preciso lembrar que qualquer aversão ou temor puro e simples da polícia não significa desprezo pela ordem social ou pela autoridade constituída: é que a história dessa instituição no país, desde o Império, não é mesmo de se comemorar. Polícia no Brasil, historicamente, oprime a camada mais pobre mesmo – e atavicamente confunde investigação com porrada. Isso não é uma noção que se mude da noite para o dia. Vai precisar de “Tropa seis, sete ou oito” para alguma coisa neste terreno aí sair do lugar.
Embora, chegando aqui, a gente tenha de reconhecer que não é esse o objetivo da sequência de filmes de José Padilha. E o mérito maior de “Tropa dois”, sempre neste raciocínio, é o de jogar mais luzes sobre o “Tropa um”. O que o primeiro tinha de explosivo, o segundo tem de analítico. Mas a tortura é uma constante, e a ela sempre iremos reagir com vigor – tanto quanto o Capitão Nascimento reage às tramóias e articulações que descobre na sua nova aventura semidocumental.
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