segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Trabalho infantil


Que tem muita criança sofrendo neste mundo qualquer um sabe. Mas existe uma categoria de criança sofredora que não figura nos habituais catálogos de misérias, como a fome, os maus tratos, o trabalho infantil. São aqueles pobres meninos açoitados pelo excesso de admiração dos seus pais.

Dei-me conta deles por acaso, agora no final de semana, durante um rotineiro passeio até o parque infantil Ana Lídia, que fica bem no centrão de Brasília, dentro do por essa época verdejante Parque da Cidade (este aí da foto acima). Enquanto Cecília e Bernardo corriam a valer – ainda se fala “correr a valer”? – entre brinquedos simples, gratuitos e coletivos que toda criança deveria aproveitar pelo menos de vez em quando, reparo num pobre garotinho todo arrumado (mas com algum despojamento bem calculado como é comum hoje em dia), perseguido por quatro adultos incansáveis na labuta bem pouco infantil de preparar o que deve ser um daqueles books de fotografia.

Dois casais, do que presumi ser um deles formado por dois fotógrafos profissionais com suas câmeras atadas aos pescoços, suas roupas bem produzidas demais para quem vai a um parque de diversão ao ar livre numa manhã chuvosa de sábado. Os outros dois pareciam ser os pais do menino, que se chamava Pedro. Um nome de uma coloquialidade falsa como a manhã daquele pobre menino (nada a ver com seu Pedro aí, viu, Nossa Mana!). E aquela que parecia ser a mãe do garoto, que por sua vez devia ter seus cinco anos, igual a Cecília, também estava equipada com uma máquina fotográfica profissional. Então eram três câmeras apontadas permanentemente para o coitado do menino.

E não havia lugar para onde Pedro fosse, canto para onde olhasse, ar que respirasse que pudesse escapar da fúria fotográfica dos adultos ao seu redor. Bandos de meninos e meninas brincando ao léu ali ao lado, às vezes até “atrapalhando” a longa sessão de fotos de Pedro, e nem assim os adultos se sensibilizavam. Não deixaram Pedro brincar nem um pouquinho – e nem Pedro pediu, como eu esperava que fizesse. Desconfio até que, a esta altura, tão acostumado a ser modelo para um book fotográfico, o pobre Pedro já tenha se conformado, tenha pedido a noção do que é brincar sem preocupações, entregando-se triste e mudo à agenda que o mundo adulto para ele programou.

E tome ordens: “Pedro, vira pra cá”, “Pedro, olha pelo buraco do brinquedo”, “Pedro, põe só a cabecinha do lado do tronco da árvore”... Quatro adultos e nenhum se tocou de que, deixado na espontaneidade da brincadeira sem marcações fotográficas, Pedro seria um modelo bem melhor para as fotos em produção. Era só largar o menino em paz e segui-lo, com a sensibilidade de disparar na hora certa. Mas, não. Pelo jeito, profissional ali não eram os fotógrafos, mas o pobre menino – e só de escrever isso, já me perguntou se não se trata mesmo de uma dessas crianças que trabalham como modelo desde pequenininhos...

O certo é que não ficou tronco de árvore em que o garoto não tenha se escorado com pose inteligente para tirar retrato. Até no balanço, o inocente e clássico balanço infantil, não deixaram Pedro brincar – e Pedro nem reclamou, o que me soa ainda mais estranho. Vejam vocês: o pai (devia ser o pai, não garanto) botou o menino na cadeirinha, ergueu o balanço até o ponto mais alto que conseguiu e... passou a balançar o filho como faço eu com Bernardo ou qualquer pai com seu filho? Nada disso: o cara ficou parado, suspendendo o balanço com Pedro lá em cima, como quem brinca de “estauta” (como diz Bernardo). Era só mais uma pose pra tropa de fotógrafos. Batido o clic, ele apenas voltou a cadeirinha para a posição normal e esperou Pedro sair, sem balançar nem uma vezinha.

E Pedro, o modelo mirim, seguiu como um boi domesticado para mais uma pose no troco de mais uma árvore.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Suvaqueanas número 2



Tio Renato faz a festa da sobrinhada nos intervalos da saída do Suvaco da Asa, nobre agremiação cruzeiro-sudoestiana que antecipa o propriamente dito nesse quadrado de Brasília.

Exames altamente suspeitos

Interrogatório policial perde. Ou você nunca foi a um laboratório para fazer aqueles exames que só aos olhos dos médicos são considerados "de rotina"? Ou será que eu é que nunca os faço - e me impressiono diante do ritual que os antecede. Sem mais próclises, vamos ao caso. Hoje acordei cedo para bater meu ponto no Sabin mais próximo, como quem é convocado para prestar o serviço militar. Aquele negócio de acordar cedo, manejar pipetas e recipientes na estranha atividade de coletar urina - o segundo jato, lembre-se! - e finalmente pegar minha senha e aguardar o atendimento. Eu disse serviço militar? Pois queria dizer interrogatório policial, porque para quem não é do ramo - aquela ampla categoria que foge dos médicos na qual eu me incluo - tudo isso tem um quê de investigação sobre um cidadão acima de qualquer suspeita: eu mesmo, esse valoroso espécime humano portador de uma saúde de ferro, até segunda ordem ou terceiro diagnóstico.

O constrangimento do suspeito começa diante daquele totem onde se retira a senha. Você já fez isso tantas outras vezes mas sempre se interroga: senha normal, preferencial, retorno, urgência, categoria hipocondríaco envergonhado, consumidor de plano de saúde (que precisa justificar o dinheiro empregado nem que seja vendo um clínico geral recém-formado) ou apenas checagem rápida? Como de longe todos somos normais, vamos nessa - só para, no instante seguinte, descobrir, como esse pessoal que adora reclamar do politicamente correto, que o normal é o último a ser chamado. Normal, ora. Toda essa indecisão só para saber, uma vez diante da mocinha de plástico higienizada até a última dobrinha, que devia ter pego a senha de "retorno" -claro, que anda mais rápido, a tempo de o xixi ali naquela pipetinha que trouxe de casa não perder a validade de 60 minutos, o que me obrigaria a nova tarefa estranha de manejar recipientes para coletar o dito cujo ("segundo jato, lembre-se").

Começa o interrogatório:

- O senhor toma algum remédio controlado? Não, minha filha, eu sou o descontrole em pesssoa.

- O senhor tem algum tipo de infecção urinária? Sinto muito, sofro apenas de um tipo esquisito de infecção intelectual, mas já me disseram que tem cura.

- A que horas o senhor jantou ontem? Juro que não consultei o relógio, mas também garanto que cumpri o jejum de oito horas.

- Doze horas...

- Não. Oito horas. Foi o que a sua colega me orientou ontem quanto estive aqui.

Pronto, por um momento vi todo o meu tormento de acordar com os galos inexistentes do Sudoeste dar em nada. E o pior: ter de repetir tudo de hoje pra amanhã. Mas eram oito horas de jejum mesmo, de maneira que só precisei aguardar mais um pouco na segunda fila, a dos pré-atendidos, para passar à etapa crucial do processo investigatório: o crime propriamente dito, que é dar o sangue para o exame semiassassino consumar suas nefastas intenções, digo, suas análises.

Falta agora receber o resultado e procurar o delegado-chefe, digo o cardiologista que vai examinar tudo e me submeter a outra bateria de perguntas, inquirições, levantamento minuncioso de suspeitas sobre a saúde deste pobre diabo.

E então, finalmente, poderei - se tudo der certo e eu for absolvido das desconfianças, digo, aprovado nos exames - entregar meu rosto exausto ao cirurgião que vai me arrancar aquele sinal logo abaixo do olho direito, que surgiu do nada e cresceu como uma sombra de filme noir. Sinal que tanto me incomoda e está, por sua vez, coalhado de suspeitas de ser alguma coisa além do que aparenta. O mistério policial continua algumas postagens mais tarde, vocês aguardem.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Suvaqueanas










Do desfile do célebre Suvaco da Asa, agremiação carnavalesca com sede no quiosque das codornas que toma ruas do Cruzeiro Velho e do Sudoeste por estes dias que antecedem o propriamente dito. Tião, Rejane, Bernardo e Cecília na companhia de Renato, Aninha, Plácido, Manoela e participação especial da diaba Ana Chalub.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

O último mistério do Egito


No caso do Egito, o que mais intriga é o instante definidor daquela explosão. Como é que durante trinta anos vigorou, com a conformidade sólida e imóvel das pirâmides, o silêncio e as cabeças baixas e, assim, em meros 18 dias, no rastilho de um alvoroço em terras vizinhas, tudo ganha uma pressão interna tal que não há outra possibilidade de alívio que não seja o arrancar as cascas das feridas e dar vazão à secreção contida? Em que momento, com que víeis, em meio a qual substância humana e social aquela pasta de obediência se liquefaz e cessa seus efeitos, suspendendo a dormência e incrementando a dor coletiva a ponto de colocar tudo – nem tudo, é verdade, mas o essencial – abaixo?

Numa fotografia de uma edição dominical de jornal de dias atrás, lá estava sorridente na sacada do apartamento do hotel onde mora no Cairo o célebre ator Omar Sharif, um dos egípcios mais conhecidos do mundo ao lado de Cleópatra e do agora debandado Hosni Mubarak. O que ele estava dizendo no jornal? Apoiando as manifestações, defendendo a democracia na terra dos faraós. Muito bem, elogiável – mas lendo aquilo fiquei me perguntando onde estava o Dr. Jivago durante todas essas três décadas...

Mas com certeza não é a adesão da celebridade – elas que aqui e ali aproveitam esses momentos definidores da aventura humana para reafirmar suas presenças no planeta esquecido – que introduziu com astúcia e perícia o espinho no tumor. Quem há de tê-lo feito, em que circunstância especial dentro da situação maior a ponto de solapar aquela ordem que durante três décadas tão pouco incomodou a mesma imprensa ocidental pró-EUA que agora não para de se ajoelhar aos pés dessa rebelião sem rosto claro e definido?

Quem ou o quê – e como, e quando – deu-se o tranco definitivo, o sinal tão estranhamente codificado que fez dizer a todos que o cabo de força estava ganho? Como se chega a ele, eu me pergunto. E sei que há gente se colocando diante da indagação inversa – como é mesmo se que anula este mesmo, feroz, imbatível, tsunâmico impulso modificador? Perguntas e lições emanadas do Egito que a gente imaginava só haver nos velhos livros colegiais de História Geral.

Hiporonaldismo


Ninguém precisa ser Ronaldo Fenômeno para ter um hipotireoidismo. Qual é o seu, já descobriu? Claro que aqui se trata do lado mais, digamos, simbólico da doença. Desta ou de qualquer outra. Que pode acometer um astro do futebol planetário ou o mais anônimo vigia noturno da sua rua periférica. O fundamental, que aprendemos hoje com Ronaldo Fenômeno é: ao contrário da máfia e outros males mais objetivos, o hipotereioidismo vai na subjetividade. Ele não mata, mas obriga você a ter um ataque choroso de humildade e a mudar – algo que, para certas pessoas, pode ser um castigo maior ainda.

Havia acabado de ler a coluna de Tostão na Folha de S. Paulo de ontem, onde o ex-jogador e agora analista de futebol diz, taxativamente e com a experiência de quem já brilhou nos gramados, que certos jogadores teimam em continuar atuando mesmo sem condições apenas porque não sabem mais o que fazer da vida – ou por se tornarem viciados naquele circo de bajuladores internacionais que lhe fazem a corte. Só não está lá o nome de Ronaldo. Foi acabar de ler, ligar a televisão em busca da última catástrofe ou da mais recente crise política e... lá estava o ex-Ronaldinho se despedindo em lágrimas.

Tostão cantou bem o que iria acontecer – como nenhum comentarista político de obviedades é capaz de fazer na esfera das disputas pelo poder partidário e não futebolístico. E ao fazê-lo com aquela qualidade ponderativa de analisar o que se passa em campo e fora dele, deveria era se mudar para a política, onde se sairia bem melhor do que certos passionais detentores de colunas de página dois dos grandes jornais; a matéria em si nem se diferencia muito se a gente for olhar bem.

Voltando a Ronaldo e ao hipotireiodismo: todo mundo deveria ter o seu, encontrar o seu, mirar-se diante do seu. Na pior das hipóteses, enfrentar o próprio hipotireoidismo simbólico iria fazer de cada um uma pessoa melhor. Porque quando o hipotireoidismo aparece, assim de repente, obriga o sujeito a rever todos os seus procedimentos, a planejar toda uma nova vida apenas com o que ele tem efetivamente a oferecer (no caso do pessoal do futebol, parece que não é muito, mas isso não é uma característica restrita a este meio), decreta que se reinventar é um componente e tanto da condição humana, embora pouca gente se lembre dele. E fala a verdade: para ter um hipotireiodismo, basta estar vivo. Não há garantias contra ele – e só o fato de ele atacar pessoas com o talento, a fama, o dinheiro e o poder decorrente disso tudo que tem um Ronaldo Fenômeno já deveria ser um alerta e tanto para cada um de nós, aqui no anonimato da planície.

Então, já achou o seu?

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Um filme, por favor


Nem “Cisne Negro” nem “O Turista”. Tampouco adianta assobiar de soslaio e entrar numa sessão obscura de “Malu de Bicicleta”, que dá tudo na mesma. Uma ventania de filmes ruins, uns reconhecidamente e outros não. O cisne platinado, embora ilustrado pelo rosto belo e expressivo e CDF de Natalie Portman, termina sendo o pior entre eles. Isso mesmo que você pensou numa conclusão a jato: exatamente por ser o mais pretensioso do conjunto. Aos demais, dá-se o desconto de já nascerem candidatos a nada. Daí porque “O Turista” e “Malu de Bicicleta” devessem sofrer menos, caso gente fossem – e não filmes tentassem ser.

Do Cisne, brota do fundo da tela logo no início uma estranha lembrança de certa “Carrie, A Estranha”, às voltas com uma mãe fanática até a caricatura em produção de idêntico nome. Ah, mas aquilo era um Brian de Palma legítimo, sem vergonha de ser popular, orgulhoso dentro da sua beca costurada pelo fazedor de múmias pop e não literárias Stephen King. Aqui, não: trata-se de produto fino – e o tema em exibição, a busca da perfeição e o enfrentamento da própria maldição por meio da grande arte do balé já diz tudo. Mas a fila anda, o filme roda e, já a caminho do final se descobre que a profundidade do lago desse cisne não vai muito além daquela contida no balde de sangue de porco que os antinerds de Brian de Palma derramaram sobre Sissy Spacek, coitada. Do que se deduz que a garota esquisita dos anos 70 sofreu tanto quanto a ex-aluna de Harvard neste grande acontecimento do terceiro milênio – só que de forma condensada. Sim, de uma maneira ou de outra as duas conheceram seus demônios. A diferença é que no filme de 1976, popular, rasteiro e imediatista que seja, essa jornada rumo ao que de mais escuro há em cada um soou mais tensa e verdadeira do que na girândola sombria e ao mesmo tempo clean armada pelo novíssimo cineasta Darren Aronofsky para sua Portman brilhar. (Pessoalmente, fiquei mais sensibilizado pela presença rápida, mas notável e ofuscante no filme, de Winona Ryder, a quem não via na tela grande desde que devia ter – eu, não ela – uns vinte e poucos anos, mas isso é outro papo).

De maneira que o cisne, negro ou branco, pareceu-me, embora belo, raso e fugaz como os vampiros chiques de “Fome de Viver”, por sinal o filme inaugural de outro cineasta acusado de hipoglicemia estética mas que não faz por menos e orgulha-se, hoje em dia, de filmar uma pequena catástrofe atrás da outra: Tony Scott (enquanto o irmão, Ridley, oscila entre o sistema e sua superação). A impressão, nos corredores escuros daquele presídio disfarçado de coxia de teatro que se vê em Cisne Negro (repare nos blocos crus de concreto que servem de paredes) é de que o vampirão David Bowie vai entrar em cena a qualquer momento. Ou de que Natalie Portman só vai mesmo achar seu lado negro – ôche, e ela não deveria ter tropeçado nele quando fez sua parte na saga do “Star War”? – quando Catherine Deneuve, outra chupa-sangue de elegância exemplar do velho filme de Scott, entrar em cena. E pressente-se que isso pode acontecer a qualquer momento.

Aí o pobre cinéfilo desorientado, com poucas horas de folga de filhos e compromissos para se trancar na sala escura, olha para o lado em busca de alguma coisa menos assumidamente ordinária do que “O Turista” – que, vá lá, até diverte e merece menos bofetadas do que está levando, justamente por envergar orgulhoso a mesma canastrice que o “Cisne Negro” tenta disfarçar – e arrisca alguma coisa leve como... “Malu de Bicicleta”. Promessa de um filme solar, carioca, leve, sentimentalóide como convém de vez em quando, ligeiro, suave e, se possível, divertido. Foi quase isso a adaptação que o comumente produtor Flávio Tambelini fez com um livro menos conhecido de Marcelo Rubens Paiva. Mas logo todas aquelas promessas não muito confiáveis confirmam sua quase também anunciada não-realização. É quando o filme, indeciso entre ser paulistano-entediado e carioca-deslumbrado, sucumbe a uma montanha de chiclês sobre relacionamentos moderninhos e galinhagem politicamente justificada, numa mal referida abordagem de um tema clássico, a velha infidelidade duvidosa de uma Capitu-maldição que deve fazer Machado de Assis querer destruir cada um dos incautos que ousaram lhe fazer, como se diz mesmo?, uma “homenagem”.

Portanto, as esperanças estão depositadas em “Bravura Indômita” (embora desconfie que bravura não é bem algo que faça parte do universo dos irmãos Cohen), “Um Lugar Qualquer” (da eficientemente contida Sophia Coppolla) e, se é para escrachar de uma vez, o tal “Incontrolável” (que vem a ser o nome do vigésimo milionésimo thriller que o irmão de Ridley Scott roda com Denzel Washington).

Olinda situação





quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Posse


Enquanto esperamos aqui embaixo, nos porões reciclados da moderna arquitetura brasileira, acima de nós os 509 - faltaram 4 eleitos - congregam-se no banquete eletrônico que lhes dará um novo cacique. É a sessão preparatória para a instalação de mais uma legislatura na Câmara dos Deputados e tudo soa a festa. Para muitos, cívica e democrática. Para outros, cujo raio de visão não consegue se deter na moldura institucional dos festejos, também brega e deslumbrada. O mais provável é que seja as duas coisas: um ensaio demonstrativo de nossa tenra república ritual, essa que tropeça entre as minas mal enterradas de vinte e tantos anos da mais recente ditadura e os cumes cidadãos de montanhas de benefícios de última hora, nesta floresta de bolsas e cotas que de fato tão poucos têm e tantos querem desbastar.

No ringue onde em breve deve se exibir com óculos de intelectual convertido o nosso rústico deputado Popó, o espaço ainda é ocupado por gente menos elástica, embora o adjetivo se aplique mais à fisicultura do que à prática política. De um lado, estava o "ursinho carinhoso" Marco Maia, um avatar luliano de biografia similar, embora bem menos notável, à do presidente em descanso. A comparação vem da trajetória de operário e sindicalista alçado ao panteão da nova política. E o apelido vem de outra semelhança, com os personagens do desenho animado, o que garante um ar de bom mocismo bem diverso daquele exalado por seu antigo concorrente, o voraz Cândido Vaccarezza, cujo nome é por só uma ironia. Do outro lado do ringue deste salão verde vertido em ginásio político, estava o representante das rosquinhas Mabel - Sandro, o deputado com eterna cara de menino dono da bola. Correndo por fora, os aparícios dos extremos de sempre: Chico e Bolso. Outra dupla perfeita.

Um quarteto, pois então, à altura do rodapé em que não raramente essa disputa pela Presidência da Câmara termina resvalando. Ursinho Ccarinhoso versus Rosquinha Mabel, o ativista carioca do PSOL contra o representante galhofeiro dos ditadores mais recentes. O que faltou, então, para além dos vestidos chamativos que as esposas dos deputados em dia de posse envergam como se estivessem não no interior cinzento do prédio do Congresso mas sobre o tapete ensolarado da entrega do Oscar... Compostura não foi - e o nobre parlamentar Tiririca estava lá para garantir a polidez que não se espera de um legítimo representante da fauna humana brasileira. Era, quem sabe, o mais sério e compenetrado do salão - ainda que por timidez atávica da raça-povo quando em ambiente estranho e solene. O que faltou mesmo foi alguma espécie de grandeza, eis a palavra.

A festa da posse dos novos deputados, com seu habitual tumulto de trânsito caótico nas cercanias do Congresso, sua costumeira reclamação sobre a falta de lugares para todos (o Plenário Ulisses Guimarães, quem não sabe, tem apenas 400 cadeiras para acomodar os 513 legisladores eleitos) e sua feérica aparência de encerramento de festa de interior travestida de rito nacional tem direito a ser tudo isso. Mas na disputa da cadeira mais cobiçada, espera-se sempre um quê de - a palavra não é bem superioridade, o que denotaria uma escala de valores que destoa da idéia de representatividade política igualitária - grandeza. Aquela qualidade que não se define bem, mas sente-se perfeitamente. Aquele talento de calar o Plenário, como raramente se vê, mas acontece - e não interessa aqui se com esta ou aquela boa ou má intensão.

Não é que Marco Maia seja um mau presidente, ou Mabel uma piada em forma de liderança. Cada um deles tem seus méritos - a biografia paciente do primeiro e a teimosia corajosa do segundo em se lançar candidato - mas o ocupante que a tal cadeira implora precisa vir vestido com alguma forma de brilho, alguma discreta capa de cumplicidade e ao mesmo tempo distanciamento que não parece envolver o eleito. Marco Maia nasce, desenvolve-se e vence dentro da própria instituição, alimentado pelos seus rituais de negociação, vitaminado pelo que a corporação tem de mais particular. Não por acaso, passou de vice a presidente. E o cargo parece pedir alguém que venha ou vá além disso, como um Ulisses Guimarães chutando os cães dos militares ou mesmo um Luiz Eduardo Magalhães que, embora favorecido pelo oligopólio político familiar, tinha no olhar a aspiração de atingir aquela outra presidência, bem mais poderosa. Pode-se censurar o vasto apetite político do clã, mas é preciso admitir que o plano político de longo prazo de seu representante dava outra coloração à sua presidência legislativa.

O que talvez esteja ocorrendo seja a consagração da pessoa comum no altar da política pátria. E aí sim a eleição de Marco Maia faz todo o sentido: é o império da normalidade sem apelo, embora eficiente e bem representativa do corte transversal que expõe o nervo da sociedade brasileira. Como Dilma no Planalto e a antiperformance presidencial que não para de impressionar os críticos da política. Menos espetáculo e mais ação. Carisma engavetado em função de um desempenho que fala por si só. Um sinal dos tempos na era pós-Lula, cautela e canja de galinha para amaciar o tecido social onde certa nova direita tenta cravar as estacas de sua barraca de guerra. Se assim for, tanto melhor - embora a presença marcante de uma personalidade singular sempre faça alguma falta no horizonte da história em andamento. Não por paternalismo genético de nossa parte, mas por necessidade de lideranças com capacidade não só de enxergar o país como ele é mas também de comovê-lo até fazer um e todos saírem minimamente do lugar. Até recentemente, tivemos um exemplo bem marcante de alguém assim.

O virtual presidente



O eleito foi Marco Maia, mas no anticarisma que define essas novas personalidades à frente dos poderes - Dilma, Maia, Peluzo - quem mais apareceu na noite desta terça-feira, conduzindo a eleição da nova mesa diretora da Câmara, foi o deputado poti Henrique Alves. E não foi a primeira vez que ele conduziu o rito final da sucessão no Plenário Ulisses Guimarães. Acontece que, como o deputado com maior número de mandatos entre os de mais idade, cabe sempre a ele esse privilégio institucional.

Também foi Henrique quem proclamou a vitória de Michel Temer na disputa anterior.É possível que também tenha sido ele quem entregou o cargo a Aldo Rebelo e até a Severino Cavalcanti. É só ver os arquvos para confirmar, mas o que interessa é que ontem parece ter sido diferente. Tudo porque, ao que tudo indica - embora garantias não hajam neste terreno - na próxima disputa caberá a ele não proclamar o resultado, mas recebê-lo como uma dádiva política. E talvez por isso, na noite de terça o que se viu na Câmara foi quase um trailer desse momento que ainda não aconteceu.

Henrique, na qualidade de comandante da eleição, chamou mais a atenção das câmera da TV Câmara do que os próprios competidores. Do que o próprio vencedor também. Não se está falando aqui de mérito ou legitimidade, mas de performance pura e simples. Muito à vontade entre seus pares por onde circula há décadas - e seja lá o que isso queira dizer de bom ou de ruim - Henrique, nas poucas intervenções que fez, fez-se aplaudido e congratulado com uma energia que não se viu, por exemplo, no discurso de Marco Maia - fosse como candidato ou já como vencedor. Diante de um Silvio Costa enfezado como de costume, respondeu com dois anos de antecedência uma dúvida regimental-política que se constitui em saia justa enfiada nas pernas do Legislativo e do Judiciário (a questão, pra quem não viu, era sobre dar ou não posse aos suplentes das coligações - e não aos dos partidos - contrariando parecer do Supremo Tribunal Federal). O provocador Costa aproveitou para saudar a resposta como a primeira boa manifestação de Henrique como o presidente da Câmara que o político potiguar pretende ser. E houve quem gritasse para o áudio apurado da TV Câmara um "Henrique Presidente" antes mesmo de se formar aquela fila infinita de deputados para votar na urna eletrônica.

Performance não tem a ver com posição política. O sujeito pode ser o mais completo parlamentar em termos de compreender os impasses brasileiros e as alternativas para resolvê-los, mas também um desastre quando tenta convencer dessas soluções o distinto público. Basta lembrar a própria Dilma. Isso é para deixar claro que, ao ofuscar em performance aqueles que deveriam ter sido as estrelas do plenário na noite de ontem, Henrique não se torna melhor - só dá uns passos à frente. E como tem passeado à vontade o moço nos últimos dias, a espalhar no ar mil e umas queixas do governo, a investir no declaratório espetacular de que vem fugindo o mesmo governo, até mesmo cometendo o pecado mais capital da política brasileira atual, que é o de cutucar o desempenho de outra peça deste tabuleiro - os jornalistas, suas redações e o produto que levam ao ar ou às bancas. Onde isso vai dar não se sabe, mas é certo que a presença de Henrique fez-se notar mais nitidamente ao longo de todo esse processo.

É mais ou menos como a campanha presidencial e seus fiapos que aqueles mesmos jornalistas não se cansam de puxar: Marco Maia, assim como Dilma, foi eleito, mas o que parece interessar mesmo - já que tal resultado não agrada às redações - é 2014. Aécio, Serra ou Lula, quem estará lá... Um mês depois da posse na Presidência da República, ainda é como se Dilma fosse uma presidente-tampão, um acidente das urnas que causa certo incômodo. Nada muito grave, mas algo que se pode resolver já-já, daqui a quatro anos, corrigindo a História e devolvendo Serra - ou um seu aparentado mais suave e deglutível - ao lugar que sempre lhe coube no Palácio do Planalto. Henrique, em cargo diverso mas circunstância semelhante, mal parece esperar se passarem os dois anos de mandato presidencial de Marco Maia para sentar na cadeira da qual disse, sem dirfarces na noite de ontem, ser difícil se afastar. Pelas vias regimentais, terá que esperar, mas pelo caráter simbólico de sua participação na sessão preparativa, é como se já estivesse lá, apenas deixando o gaúcho Maia ter a impressão de comandar a casa.

Credo Urbano

"Manadas de utilitários negros e prateados escorrem pelas vias do Plano Piloto. É o dia motorizado raiando no verão asfáltico de Brasília, com sua procissão de servidores e suas igrejas hierárquicas de bispados variados. Encerrado o ciclo dominante das chuvas da estação, a cidade já se plastifica com seu ar rarefeito de céu azul e sol que apunhala com gosto os cumes pontudos de suas catedrais e monumentos."

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