terça-feira, 5 de outubro de 2010

Aborto eleitoral



Tem algo muito incômodo nesta nova evidência do tema da liberação do aborto como indutor de votos contra Dilma. A denúncia contra a posição dela, que seria favorável à liberação, teria provocado outra sangria nos votos esperados e não confirmados na eleição de domingo. Dilma teria sido vítima de uma campanha em comunidades evangélicas e de expressão católica mais forte, em regiões periféricas do Sudeste, assim como da boataria via internet. E pela postura da candidata no JN de ontem, afirmando, de maneira até meio postiça, que “defende a vida em todas as instâncias”, mas sem pronunciar claramente a palavra “aborto”, este fator deve mesmo ter lhe tirado um bom naco de votos.

Várias coisas incomodam neste novo caso à parte. O primeiro é o silêncio das ilustres, famosas e notáveis mulheres que, ano sim ano não saem na capa da Veja proclamando que “eu fiz aborto”. Onde estão essas mulheres? Cadê Ruth Escobar e Elba Ramalho? Por que elas não aproveitam este momento crucial em que o país debate a si mesmo e se expõem em defesa da liberação do aborto? Talvez porque essa exposição poderia parecer uma defesa de Dilma, ainda que a candidata esteja pisando em ovos para se afirmar contra a liberação. Mas é uma omissão gritante, dessas que ensurdecem a sala na hora do jantar: quando cobrar a liberação do aborto é algo cult e pra frente na capa da Veja, lá estão elas. Quando se trata de uma campanha presidencial que pode arranhar biografias tão retocadas pelo marketing da indústria cultural quanto a dos candidatos, só ouvimos silêncio.

O outro incômodo vem da própria candidata. É um pouco demais ver Dilma, com toda aquela estampa de geração de 68, toda aquela imagem associada à luta da mulher para se fazer respeitar em todas as instâncias, tendo que descer de suas posições para atender a uma expectativa retrógrada do eleitorado religioso. Não tenho nada contra religião, tenho até aquela porção de misticismo que me faz parecer mais tolo do que devo ser, e por princípio não gosto de aborto. Mas se trata aqui de um assunto menos de natureza religiosa e mais de extração cidadã. O que está em questão é um princípio legislativo – e é preciso respeitar o direito da mulher de fazer ou não o aborto, e não criminalizá-la por isso.

De maneira que quando Dilma desce de sua posição contemporânea, avançada e desatrelada da religiosidade – que, acho, é algo da esfera pessoal e não da arena pública – para recuperar votos perdidos no que de fato é muito mais uma campanha de difamação, isso não pode estar correto. Assim, prefiro perder para Serra e suas conversões de última hora – foi por essas derrapagens, por sinal, que a imagem de Serra saiu bem chamuscada nesta campanha, mesmo que ele venha a vencer. Tudo é uma questão de falar claro – e de ter o apoio conseqüente de uma vasta camada da população que está muda por conveniência. Os eleitores “verdes” de Marina, por exemplo – não falo aqui dos eleitores “evangélicos” nem dos que vieram da “Classe C que protesta”. Ou será que o eleitorado urbano e pop de Brasília que elegeu Marina a mais votada no DF é contra a liberação do aborto? São as hipocrisias que cercam e deixarão marcas nessa disputa eleitoral.

Nenhum comentário: