terça-feira, 19 de outubro de 2010

Altos e baixos


O que o caso dos mineiros do Chile pode sugerir sobre o vai-e-vem do sucesso e do fracasso na política eleitoral, por exemplo

Assim é a vida: hoje no buraco, amanhã no topo. Quem parece nos dizer isso com a informalidade frugal de um bate-papo de café de livraria são os mineiros do Chile. O caso dos 33 homens que passaram mais de dois meses – 69 dias – presos a 622 metros da superfície, em condições mais propícias a ratos e baratas do que a seres humanos contém, naturalmente, uma carga de significados que vai muito além do júbilo que o salvamento deles inspira.

Os mineiros do Chile são a própria encarnação daquilo que a gente chama sem dar muita importância de “altos e baixos” da vida. O fato de eles terem sido resgatados das profundezas da terra para cair imediatamente nos trampolins fáceis da fama, como indicam as notícias sobre cruzeiros marítimos de presente e livros e filmes em vista, mostra como podem ser voláteis as rotações do planeta vida.

A capacidade de resistência que eles tiveram enquanto estavam no que a gente, muitas vezes sem se dar conta da gravidade, chama de “fundo do poço”, é motivo de reflexão para muita gente que, de tanta soberba, jamais admitiu descer a um mero metro que seja do chão onde pisa – porque não pode levitar, claro.

A cena dos mineiros içados à superfície é marcante demais para a gente não transformar em metáfora. Quem é que não lembra de um caso que seja de... hum... um político, por exemplo, jogado às profundezas do desprezo, por questões tão sérias quanto o desmoronamento de um canal de mineração? O primeiro que me vem à cabeça é José Dirceu, transformado pela imprensa (sim, ela mesma, que não venha bancar agora a santinha vitimada pelo patrulhamento ideológico) e, ultimamente pela propaganda de José Serra, em exemplo de escória política da pior qualidade.

Penso na biografia de José Dirceu, meço com a trajetória de Serra, comparo com os feitos de Lula que, sem Dirceu, talvez não tivesse conseguido se eleger em 2002 com o meu, o seu, o nosso voto e, conclusão: ele pode ter sua megalomania e sua empáfia de político competitivo, mas não merece esse tratamento. Dirceu é o cordeiro imolado dos maus hábitos da política brasileira – e se ele é um petista, tanto melhor para quem construiu esta mesma política e sai ileso do processo. Nesta condição, o ex-ministro está tal e qual um mineiro aprisionado nas profundezas do processo político. Somente lá ele pode agir, se movimentar, exercer o que lhe restou de cidadania política.

Ele é vaiado em aeroporto e agredido aos gritos em restaurantes, como se fora o que de pior a espécie política produziu nos 500 e tantos anos de Brasil. E por ser assim, parece que ele sempre estará contido por esse desmoronamento de outra natureza, condenado a perecer na sombra do buraco de onde nunca poderá sair. Parece que não há futuro para figuras como José Dirceu. Parecia que não haveria Fênix para os mineiros do Chile. E no entanto.

Outro exemplo que pipoca nas minhas anotações mentais: a deputada potiguar Fátima Bezerra, tão petista quanto este que vos escreve. Havia, até o resultado da eleição de 3 de outubro passado, figura mais apequenada na política potiguar do que Fátima Bezerra? Derrotada para a Prefeitura de Natal há dois anos, numa eleição vencida por Micarla de Souza em primeiro turno – portanto, da maneira mais humilhante –, Fátima parecia condenada a ser, quando muito, a eterna deputada federal da esquerda potiguar, a única a figurar nos mapas de votação, como uma espécie de concessão democrática que os mandões da política local davam aos bárbaros petistas. E no entanto.

Aí está Fátima Bezerra reeleita com uma votação tão expressiva que se tornou destaque nacional entre as parlamentares mais votadas. Fátima à frente de Henrique Alves, a figura que até pouco tempo parecia imbatível neste tipo de disputa. E quanto à gestão de Micarla na prefeitura, as notícias que chegam não são das mais animadoras.

Tenho um terceiro exemplo, este do Distrito Federal: Cristovam Buarque. Não cabe em palavras a tradução do que foi ver Cristovam, depois de um governo aprovadíssimo, com destaque para políticas sociais como o Saúde em Casa e o Bolsa Escola, perder em primeiro turno para a própria representação do atraso que era (e ainda é) Joaquim Roriz. Só quem viveu esse trauma sabe o que é a dor de ver um projeto feliz sendo derrotado pela pior demagogia.

Se Serra vencer a eleição presidencial, vamos experimentar de novo algo parecido, em escala nacional. Não que Serra seja um Roriz, mas bem que ele tem se aproximado do padrão de demonizar o adversário para vencer a todo custo. E o projeto de Lula, tão eficiente, democrático e aprovado quanto o de Cristovam, terá ido para o espaço assim como aconteceu naquela eleição no Distrito Federal. Aliás, até hoje Brasília tenta se recuperar do desastre que começou com aquela eleição de Roriz, redundou num segundo mandato sofrível e foi desaguar, onde?, em José Roberto Arruda, ele mesmo. Mas tantos anos depois, Cristovam foi reeleito para o Senado, derrotando agora sim de maneira humilhante figuras pouco mais do que nefastas ligadas a Roriz. Esse mesmo que agora se vê obrigado ao constrangimento de colocar sua senhora no muro de lamentações e achincalhes de uma disputa eleitoral renhida.

Mas a história já está ficando longa demais, muito distante do buraco de onde os mineiros do Chile foram resgatados na semana passada. O que deve ficar claro é que a matéria com que lidamos aqui é profundidade, resistência, sobrevivência e volta por cima. E não precisamos descer muito para constatar que o caso dos mineiros tem algo mais a dizer sobre todos esses fenômenos da vida, inclusive política, do que sugerem os plantões espetaculares do Jornal Nacional.

Um comentário:

Titina disse...

Aff Maria Tião vc escreve bem demais!!! Perfeito texto em metáforas para a roda da vida e da política.