sexta-feira, 22 de outubro de 2010
A banalidade do mal chega ao Seridó
A cena do crime que tirou a vida do jornalista F. Gomes em Caicó é a mais dolorida representação do que aconteceu nos últimos anos com o Seridó, a região onde fica a cidade e de onde veio este blogueiro. O cidadão F. Gomes, esclareço para os leitores não-potiguares, era o típico jornalista do interior do Nordeste, trabalhando numa emissora de rádio e mantendo um blogue noticioso, com ênfase para o noticiário policial, na cidade de Caicó, capital informal da região centro-sul do estado do Rio Grande do Norte. Mas também já foi correspondente na região de vários jornais de Natal, entre eles a Tribuna do Norte, em cuja redação o conheci em 1988, calado e cabreiro mas sutilmente bem humorado como tantas vezes acontece entre os filhos da nação seridoense.
F. Gomes, como dizia, teve na cena de seu assassinato uma imagem bem clara sobre como o mundo do Seridó se transformou nos últimos anos - e neste caso, para pior. O jornalista foi morto a tiros por um motociclista quando estava sendado na calçada de casa. Para quem não veio do interior ou não conhece o Seridó, essa breve descrição pode não dizer nada. Mas ela contém dois elementos extremos e distantes de uma mesma realidade, abarca o passado e o presente do Seridó. Explico: sentar numa cadeira na calçada de casa num fim de tarde talvez seja o hábito que mais traduz a informalidade camarada do homem desse interior; e ser assassinato por um motociclista coberto da cabeça aos pés por blusões e capacete é o oposto exato dessa mansidão atávica.
E foi assim que morreu F. Gomes, entre a tranquilidade de antigamente - um estado de espírito que naturalmente não era de uma santidade coletiva, mas de uma harmonia notável - e o desdém desumano dos dias atuais. As cidades cresceram, exploriram em gente, prédios e serviços. Não quero parecer retrógado e defender certas noções falsamente paradisíacas de um passado idealizado. Não: tenho idade suficiente para, morando em Parelhas, ter que ir quando criança até Caicó para fazer um mero exame de vista - e este é apenas um exemplo menor de dificuldades que o crescimento subtraiu na vida dessas comunidades distantes das capitais. De maneira que o crescimento é sempre bem recebido - e se você não concorda, vá perguntar à gente que mora lá longe, se a vida delas não melhorou. Mas junto com este progresso, veio o espírito de um outro tempo, avassalador, que tira das coisas comuns - como tomar uma brisa na cadeira da calçada no fim de tarde - a sacralidade informal que elas tinham. Que sequer enxerga isso, que é incapaz de conceber o respeito a esse tipo de banalidade tão cara a quem vive com temperança.
F. Gomes, tenha sido morto sob encomenda por um traficante seridoense como se suspeita, ou apenas como objeto de uma vingança desumana, ficará na nossa memória sertaneja como uma vítima dessa mudança de tempos. Um pequeno mártir da banalidade do mal que deixou de ser aquela abstração dos livros de história sobre o nazismo e desabou, sem que a gente tivesse tempo, coragem ou disposição para combater, sobre as calçadas das casas seridoenses.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Um comentário:
Tião o Sopão tá incrível. Corajoso, poético e contundente.
Postar um comentário