quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Ela





Quando a vi pela primeira vez, já lá se vão uns quinze anos, deu pra sentir de imediato um certo hálito de boa ansiedade juvenil. Foi como se um ventinho a mais, além de todo aquele que circula pelas ruas do Tirol, tivesse me refrescado a visão, a audição, olfato e tato.
O primeiro sentido revelava um rosto jovem e sorridente, uns olhos de verdejante cor indefinida e um aspecto geral de moça descolada, que por se saber tão integralmente bela não liga muito de viver de jeans gasto e camiseta branca.
A segunda sensação soou como música. De um tipo de cancioneiro que mesmo tendo se tornado sinfonia cotidiana nunca me cansou. Estou falando da voz dela, que contém o timbre e inflexão perfeita para adornar a figura de qualquer mulher - até mesmo das feias, e não é este o caso. É uma voz melíflua, pronunciada com uma fluidez suave, levemente cantarolada e usada para compor frases que quase sempre terminam num terno gracejo. O que eu posso querer mais?
Do olfato, veio-me uma mistura de maresia molhada com perfume seco de sertão. Dois planetas olfativos girando na órtita daquele jeito dela. Depois vieram os perfumes que ela nem precisa, claro, mas teima em usar.
O tato fica por último porque dispensa comentários e iria tirar o ar contemplativo da crônica. Vou me limitar a dizer que a qualidade da pele emitiu seus orvalhos diurnos sobre mim (era de tarde o horário daquele encontro).
Semana passada, ela fez aniversário e eu, como das outras vezes, esqueci a data exata. Pedi desculpas, comprei discos de Zeca Baleiro, fiz cara de coitadinho mas estava faltando alguma coisa. Uma palavra ou um punhado delas para recompor a nossa velha e boa canção.

terça-feira, 25 de setembro de 2007

os mortos falam

O senador Antonio Carlos Magalhães é o novo anjo da remissão brasileira ou o eterno lobo mau da ditadura disfarçado de cordeirinho imolado no altar da corrupção pátria? Mesmo a contragosto, a pergunta vai se infiltrando nas páginas da grande imprensa brasileira, sejam as eletrônicas ou de papel propriamente dito. O senador, que num momento da história brasileira foi a personificação da perversidade e do oportunismo político e em outro tornou-se uma espécie de padroeiro profano das boas intenções tucanas, virou uma nova criatura. O problema, para jornalistas com um pé na roda viva da política e outro no Palácio do Planalto, é enquadrá-la.
Antonio Carlos é uma nova esfinge – sabe-se lá o que poderá representar? Um oráculo maldito – o que vai dizer, que revelações fará? Um bruxo vingativo a quem é necessário queimar em praça pública? Ou tudo isso ao mesmo tempo? Ninguém sabe bem qual definição deve ser colada no político baiano.
Neste cipoal de dúvidas, onde estão os cacos das novas certezas? Para que lado olhar? Olhemos para trás. Durante anos, ele foi o Toninho Malvadeza, parasita dos governos militares que sugava poder alheio na mesma proporção em que reprimia os adversários desse mesmo poder emprestado. A história virou, a ditadura fez água e ele metamorfoseou-se nesta simpática sigla que freqüenta a boca de nove entre dez jornalistas brasileiros – ACM. Vai uma longa distância entre os dois epítetos. Malvadeza, a própria palavra indica, dispensa explicações. O painho ACM é o reverso da moeda – o Toninho Ternura. E agora surge o Antonio Carlos "terceira via": essa criatura a quem a imprensa ainda não conseguiu rotular com seu reducionismo que explica tanto quanto desinforma.

(...)

A mídia tem um mandamento sagrado: primeiro, construimos mitos; depois, demolimos essas estátuas vivas. É assim não só na política. Ronaldinho é apenas um que está aí para demonstrar. Os eventuais candidatos a mito contribuem, é verdade, deslumbrando-se com o cartaz, e contratando "personal-marqueteiros" para tentar esticar ao máximo o prazo da fama, no que freqüentemente cometem excessos e gafes. A platéia também, oferecendo seu nível educacional subterrâneo como ingrediente do processo. E todos – eles, os donos da indústria editorial e seus subprodutos, seja de papel ou eletrônica – lucram e ficam felizes. No princípio, nos assustávamos com o fato de a informação estar virando mercadoria. Agora, trata-se muito mais do que isso: o consumo de imagens fabricadas é quase um estilo de vida. A incultura infiltrou-se na política, era inevitável. O mau estar provocado pelo novo ACM tem tudo a ver com isso. Faltam bóias no mar em fúria do bombardeio informativo liquefeito dos dias atuais. Faltam referências sólidas, falta tradição, senso histórico, noções sobre a realidade brasileira. Sobram siglas e sentenças de impacto em textos lidos e escritos. Se é para reduzir e impactar, vá lá: ACM, mon amour, vem nos salvar.

O texto acima está morto, mas ainda agoniza. Foi publicado originalmente no finado site "Epistolar", formatado com a colaboração do amigo Sandro Fortunato. O que está dito acima data de 5 de março de 2001.

Para ler o texto na íntegra, vá até
http://www.tafalado.com.br/epistolar/

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

hit parade pré-datado


Uma lista que ninguém é de ferro. Trata-se das campeãs de execução no meu pen-drive rouco, fanho e esgoelado. Anote aí, Titina (e não dê importância nenhuma à ordem; antes, à desordem):
1) DJAVAN, Malásia
2) LUIZ MELODIA, Retrato do artista quando coisa
3) TITÃS (aquele com a gravação original de Marvin e Go Back)
4) RITA LEE, Build up (esse é novidade, embora seja antigo)
5) MARISA MONTE (o primeiro, classudo e amostrado)
6) MARISA MONTE, Mais (o segundo, pop e despojado)
7) JOÃO GILBERTO, João
8) LEGIÃO URBANA (o primeiro, de Será e Por enquanto)

jornal velho

"Geralda é carroceira. Vive há mais de 20 anos no cerrado, ela, o marido e o filho. Casa de madeirite velha, cama que ela mesma construiu, carroça montada com a força dos seus braços franzinos, cavalos domados com a bravura de seu viver. Geralda não tem um dente que preste. As unhas das mãos e dos pés são cascas tortuosas fincadas na pele. Os cabelos vivem presos por conta do excesso de poeira e da falta de xampu e água (água é das coisas mais preciosas na vida de Geralda e sua família). Geralda precisa de um agrado para viver, para lhe lembrar de que é mulher, gente, pessoa. Então, coleciona perfumes encontrados no lixo. Tem uns 10 vidrinhos, alguns de boa qualidade, largados pela metada pela antiga dona (ou antigo dono, não se sabe). Ficam ao lado da cama, pra Geralda dormir em sonho perfumada." - CONCEIÇÃO FREITAS, "Perfumes de Viver", Crônica da Cidade, Correio Braziliense, último domingo.

"O roteiro me ajuda a buscar o significado da cena. Mas, na hora em que encontro o significado, vira uma carta de intenção que você oferece à equipe para todo mundo falar a mesma língua. Porque senão fica muita abstração e não consigo trabalhar com esse nível de abstração: de filmar no papel e impor uma verdade ao set. Faço filme com a equipe, com o elenco." - BETO BRANT, cineasta, no Correio Brasiliense de domingo passado (16/07), em entrevista de divulgação de seu novo filme, "Cão sem dono".

"Sempre podemos fazer algo com nosso passado, olhamos as nossas fotos no álbum, lemos nossas velhas cartas, anotações, postais, os discos velhos, as roupas antigas, a caderneta escolar, as redações... ao correr do tempo, vamos aprendendo como o passado é precioso, cada vez mais, a cada dia ele nos constrói. A moça vive com suas lembranças, cultiva-as como flores de remédio, quer senti-las reais e imateriais." - ANA MIRANDA, "A flor da vida: roteiro de um filme imaginário", Correio Braziliense de domingo.

"Sei que serei bastante exposta à música brasileira quando for a São Paulo. Nunca estive lá. Fui ao Rio e a Brasília. As pessoas me diziam: 'Não vá a Brasília, é entediante'. Não achei, de maneira nenhuma. Adorei a arquitetura e tudo aquilo, achei maravilhoso." - YOKO ONO, entrevista à Folha de S. Paulo, também no domingo passado.

"Retóricos, os almofadinhas não admitiam que o povo se atirasse ao frevo, enquanto no front de guerra nossos irmãos se batem denodadamente pela causa das Nações Unidas. Onde já se viu tamanha baboseira, camaradas? Uma tarde, 9 de janeiro, Mário Mello entra no Café Lafayette, esquina da Rua do Imperador com a Primeiro de Março, centro de todas as atenções políticas, econômicas e sociais do Recife. Braços para o alto, cabelos desgrenhados. À mão, como quem carrega um porrete, levava um exemplar com Crônica da Cidade. Grtia em corpo oito, itálico, três: Deixou de haver algum banquete ou recepção festiva às altas personalidades por motivo de guerra?"- RONILDO MAIA LEITE, o cronista, em "Bom-dia, Recife", Diário de Pernambuco, data imprecisa.

"Seus problemas com a sintaxe e a gramática o contrapõem às gerações de doutores que construíram a sociedade mais desigual do mundo sem cometer um erro de concordância."- VERISSIMO, "Pantomimas", O Globo, data imprecisa.

"Em que momento terá sido feita a travessia em que 'enlatados' se transformaram em séries - idealização de consumo? (...) Coloco uma pergunta: será que as séries interessam mesmo tanto assim ou elas interessam porque todo mundo acredita que, realmente, interessam?" - WILSON CUNHA, jornalista, crítico de cinema, em "A beleza americana", O GLOBO, data imprecisa.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Enquanto espero

Logo vai cair a primeira chuva, levantando aquela poeirinha silenciosa que gruda nos pulmões e gripa a cidade. O verde que hoje cora de vergonha vai perder o pudor de trepar nos concretos. Haverá uma carga novinha de água morando nas avenidas de ventos que nos compõem o ar. As pequenas gargantas dos infantes planaltinos terão enfim o sossego de não tossir suas noites. O salsep vai dormir por alguns meses na cruz-averemelhada farmácia caseira. A professora de educação física vai poder sair ao sol com seus alunos. O cinéfilo terá de volta a umidade dos olhos e poderá gastá-la nas sessões baratas do cine Brasília. O horizonte estará livre de cada floco algodoado da bruma seca que o envolveu e o calou. O lago Paranoá perderá aquela aparência de espelho cortante. A lagoa do Sapo se sentirá menos responsável pela resistência coletiva dos viventes da Asa Norte. O Parque da Cidade será de novo um tapete para piqueniques imaginários. Os restaurantes rurais darão sombras de sobremesa. O céu de vez em quando vai perder o domínio do azul que o faz célebre, mas a cidade compreenderá a necessidade desse repouso.

E todos vão correr para as janelas das casas, escritórios, redações e gabinetes para ver as primeiras gotas caírem. Menos os que já vivem nas ruas. Esses, por sinal, nem vão se molhar, pois que já fazem parte da matéria da chuva.

asa norte bebe a seca









na gramática do chão do parque olhos d'água e nos verbos não conjugados do céu do eixão

A autora do novo templeite...


...e, de quebra, a presença de Bernardinho

Sabino e a miniaturização do tempo

Uma exposição em cartaz no Centro Cultural do Banco do Brasil em Brasília apresenta aos leitores uma reprodução do apartamento onde morava o escritor Fernando Sabino. Há outros elementos relacionados à vida e à escrita de Sabino na exposição, mas a sala, as estantes e a bateria que ele utilizava concentram a maior parte da atenção do visitante que leu O Encontro Marcado ou O Menino no Espelho (justamente os dois únicos livros dele que lembro de ter lido). E o que mais chama a atenção neste apartamento reconstruído em fotos, móveis, objetos e espelhos meio cenográficos é a dimensão de cada coisa.

Ao entrar e circular por esse espaço da exposição, fui tomado por uma sensação meio liliputiana. Tudo me parecia extremamente pequeno, como se uma escala de mapa mundi tivesse sido adotada no momento em que os curadores resolveram preparar a exposição. O conjunto de sofás parece acanhado demais para a dimensão literária do cronista Sabino. Os livros espalhados pelas estantes me pareceram todos miniedições, pequenos mimos editoriais de capas marrons, livrinhos mágicos por diminutos em relação ao formato dos volumes que compramos, lemos, abrimos e fechamos nas estantes e livrarias de hoje em dia. Mas o que me surgiu ainda menor foi a já célebre bateria que o romancista Sabino usava para se transformar no músico de jazz Fernando. Parecia mais um brinquedo, uma bateriazinha dessas que os pais dão para as crianças e que invariavelmente se tornam o presente mais odiado pelas mães.

Nesta altura do processo de miniaturização, ocorreram-se idéias vindas sabe-se lá de onde, mas na certa preocupadas em reinstalar a harmonia entre a visão suscinta daquele lugar onde viveu o autor e as dimensões com que acostumei-me a encará-lo. Vai ver, pensei, é tudo pequeno para confirmar a vocação do infantil, para consagrar o universo do Menino no Espelho com que Fernando Sabino nos embalou. O menino de um mundo diminuto, formado por quintais habitados por insetos e galinhas, entre represas feitas de areia, barro molhado e restos de água da chuva da noite anterior. O mesmo menino que cria minimundos na imensidão da casa paterna nas páginas iniciais do mais que adulto O Encontro Marcado.

Vai ver, foi isso. Ou vai ver tudo isso é efeito do tempo, que reduz tudo, minimiza cada evento, enxuga cada dor, desidrata cada alegria e deixa só essa essência das coisas, essa pasta invisível que é pequena e ao mesmo tempo imensa. Vai ver.