terça-feira, 26 de outubro de 2010

A semana de um bilhão de anos-luz


Ao explicar o brilho ilusório de galáxias extintas, a astronomia, distraída, lança luzes sobre a política

O físico escreve no jornal que ao olhar para o céu, o que vemos é uma fotografia do passado. Um instantâneo do que já foi, o rastro de um espectro que não existe mais. Porque o tempo do céu, na medida da astronomia, está sempre à frente do nosso relógio terráqueo. Ou, dito de outro jeito, porque nós, aqui embaixo, estamos sempre em atraso quando o assunto é a dança dos astros e estrelas lá no alto. É tudo uma piada da luz, que demorando tanto para percorrer os vastos salões do espaço, mantém suspenso aquilo que já caiu e sugere estar vivo e fulgurante o fogo extinto de astros resfriados.

É assim que uma galáxia que acabou de ser descoberta, situada a 13 bilhões de anos-luz da Terra, pode simplesmente não existir mais. O tempo que sua luminosidade leva para imprimir a digital nos telescópios terrestres é suficientemente largo para conter sua própria destruição. O brilho que ela ainda emite, mesmo depois de morta, é só uma concessão que o universo permite aos seus misteriosos componentes. E o que a gente tem a ver com isso, deve pensar o leitor. Tudo, nada, um pouco.

A campanha eleitoral pode ser uma boa pista para encontrar essa estranha conexão entre a luz de astros mortos que permanece brilhando no céu e o nosso dia-a-dia mesquinho na superfície fosca onde caminhamos entre as manadas da Terra. Depois de meses de debates e embates, de uma temporada que parece interminável de golpes e contra-golpes, vamos chegando ao final, ao dia decisivo. Esta última semana é particularmente agoniada, no sentido de que sempre fica no ar a sensação de que alguma derradeira arma ilegítima poderá ser sacada, como vimos outras vezes no passado. O tipo da surpresa que retira da parte minimamente decente do debate eleitoral aquilo que ele tinha de mais importante – e despeja os votos na grande bolsa da reação a uma notícia, na urna eletrônica da subserviência mecânica a um apelo fabricado.

O certo é que, como as tais galáxias que morreram mas continuam enganando nossos olhos aqui embaixo, a campanha acaba mas deixa no ar por muito tempo a fumaça desagregadora de uma matéria politicamente purulenta. Votamos, voltamos para casa e, vença quem vencer, não há com arrancar da pele a toxina de certos desencantos que, em determinados momentos, parecem maiores do que a vitória ou a derrota. É o brilho invertido de galáxias que não tinham que ser ressuscitadas, se já estavam mortas há tempos e se prestavam apenas à ilusão dos telescópios viciados.

Na política como na astronomia, é preciso ser um expert para periciar luminosidades ilusórias que parecem verdadeiras. Temos eleições de dois em dois anos, mas a cada uma delas aprendemos que não é fácil fixar datas de validade para anseios e projeções políticas. As ondas vão e vem – e quem consegue manejar os remos em meio a elas paga, ainda que não queira, o preço da responsabilidade de ser visto como gênio. Marcelo Gleiser, o físico do jornal, garante que nada do que vemos no céu existe no presente. A empanada noturna cravejada de brilhos do luar do sertão é uma ilusão de ótica, um grande flashback passando diante dos nossos olhos de humanos frágeis. Um desfile falso de objetos que podem não existir mais ou terem mudado por completo. Assim no céu como na vida.

Fenômenos celestes destacados pela beleza costumam ser efêmeros, como se usassem de tal raridade para valorizar sua passagem. Eclipses solares não são eventos para todo dia – e de tão fortes é recomendável que sejam mirados com alguma proteção para os olhos. O tipo do espetáculo que revela tanto quanto cega – e afinal, passa, completando em si o tempo que cabe a todas as coisas e a todos os entes, inclusive os menos notáveis. A semana pré-eleitoral é a mais longa de todas, com seus bilhões de anos-luz de possibilidades condensadas e seu suspense entorpecido. Entre ela, a campanha; nós, os terráqueos; e eles, os astros e estrelas de brilho privilegiado ainda que pretérito, há o tempo – esse mediador cínico que destrói com prazer noções de mundo que pareciam tão bem construídas.

E amanhã, depois da apuração, sabendo que o céu noturno é um retrato antigo disfarçado de polaróide ainda quente pelo motor da máquina, acordaremos todos iguais, como não parecia ontem. Um pouco menos próximos, embora, por ironia nossa e não do universo, o momento seja propício a cada um procurar sua turma. Mas um pouco mais experientes, como velhos planetas cheios de crateras em viagem pelos espaços. Nada mais do que galáxias cansadas cumprindo a lei que considera a expansão que só distancia – e nunca aproxima – um elemento inexpugnável da natureza universal, pra não dizer humana.

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