segunda-feira, 17 de março de 2008

Edmilson e os doces espinhos da flor de cactus



Naquele tempo, não havia arquivos de música, iPod, mídia multilaser e programas de baixar música. Mas havia fitas K7 com duração de 45, 60 ou até 90 minutos onde se podia gravar uma programação musical a partir dos sulcos negros dos discos de vinil. E havia um interesse em descobrir toda a força dos ritmos brasileiros, do frevo ao xote. Havia, sim, pouco dinheiro no bolso para custear as tais fitas, como havia uma urgência em desbravar o novo disco de Raimundo Fagner ou Zé Ramalho. Havia, para além disso tudo, um sujeito calmo, quase calado, com a aparência do aspirante a cantor humilde que ele era e cuja profissão era gravar as tais fitas para a gente. Estamos em Parelhas, o ano é 1980 ou 1981 e vamos chamá-lo de Edmilson - porque eu esqueci injustamente o nome verdadeiro dele e porque aqui importa menos a identificação do que a identidade por trás da qual ele se escondeu naquele tempo de fitas K7, bolachões e raros três em um.



Edmilson tinha um rosto meio triste, umas barbas e bigodes ralos, camisa aberta no peito e um previsível cordão, salvo engano adornado por um ainda mais previsível medalhão à la Roberto. Ganhava a vida gravando fitas K7 numa das principais lojas da cidade, onde se podia comprar roupas, discos, cinturões de fivela brilhante e ou outros artigos. A sessão de discos era ótima: não tínhamos do que reclamar. Em destaque na vitrine, "Gal Tropical" e o Fagner de "Eternas Ondas", entre outros. Edmilson passava o dia num cantinho entre o balcão e as prateleiras da loja, gravando em fitas K7 as músicas que os clientes deixavam anotadas em cadernos - música angariadas na vasta discoteca que a loja mantinha. Às vezes, Edmilson curtia as músicas que gravava. Noutras - quase sempre - era obrigado, por dever de ofício, a ouvir milhares de vezes aqueles sucessos retumbantes e repetitivos que desde sempre agradam à maioria mas carecem de sabor depois de tocadas três ou quatro vezes.



Acho que Edmilson gostava quando eu aparecia por lá com meus tostões e a felicidade de poder gravar mais uma fita K7 onde cabiam os baianos todos, Rita Lee, Chico Buarque, sucessos internacionais, músicas de comercial de cigarro e, claro, as últimas novidades da geração de artistas nordestinos que sacudiu o sudeste a partir do início dos anos 80. Até Pink Floyd (o disco "The final cut" inteiro) eu mandei gravar na loja onde Edmilson trabalhava. A loja era um ótimo lugar para ouvir música, com um belo equipamento de som, coisa rara e muito cara naquela época (ou "naquele tempo", como dizia sempre o padre Raimundo na abertura dos sermões). Era bom passar tempo por lá conversando com Edmilson.



Sobre o que conversárvamos? Lembro de Edmilson reclamando de um certo tipo de música - não lembro qual - dizendo que não dava para chamar os amigos pra casa e ficar ouvindo "aquilo" enquanto se batia papo na sala. Desconfio que era algo mais avançado para a cabeça dele. Porque era bem simplório o mundo de Edmilson, morador da chamada "rua do cemitério", que não era bem uma rua mas um conjunto delas, casario humilde, bem próximo do cemitério municipal. Mas não se enganem, que Edmilson não estava morto. Ele tinha, sim, suas abreviadas ambições. Notava-se que tentava vestir-se com um aspirante a pop star de interior. Tovaca violão - o que, acreditem, não era muito bem visto naquele tempo e naquele lugar. Muito provavelmente viajava a bordo de substâncias tão naturais quanto ilícitas. Namorou uma garota de outro "meio social" e, sem a aprovaçaõ da família dela, o romance foi desfeito. E, claro - este é o item principal dessa lista -, Edmilson cantava. Tentou a "Mais Bela Voz do Sertão", que era então um célebre concurso de cantores promovido pela Rádio Rural de Caicó, com direito a ginásios lotados em todas as cidades do Seridó e transmissão radiofônica de finais e semifinais, com torcida e tudo. Minha memória é falha, mas tenho quase certeza que Edmilson - que pegou já a fase meio decadente do concurso - não agradou muito na "Mais Bela Voz".

Parecia que Edmilson estava condenado a viver naquele cantinho entre o balcão e a prateleira da loja onde gravava fitas K7 com músicas que quase sempre odiava. O fato é que, alguns anos depois, eu já estabelecido longe da cidade, minha mãe me deu a notícia: Edmilson (Ah, amigo Edmilson, como eu queria lembrar seu nome, perdoe-me) havia se matado. Parece que o encontraram enforcado na sala de casa - aquela mesma onde se recusava a ouvir com os amigos certo tipo de música.

Mas eu lembro um tipo de música que Edmilson certamente levaria para tocar em casa, colocando as caixas acústicas bem nos cantos da sala que era para dar mais densidade ao som (isso é uma dica que ele me deu e eu nunca esqueci). Essa música que agradava aos ouvidos de Edmilson era o som do conjunto Flor de Cactus - um pioneiro da música pop gravada em Natal, ali no início dos anos 80. Flor de Cactus era um surpreendente precusor de "A Cor do Som", para dar uma idéia da sonoridade a quem não pegou essa época e seus signos. Pois bem: foi por causa do Flor de Cactus e sua música pré-Babal, pré-Pedro Mendes e pré-Valéria e Cida Lobo que lembrei de Edmilson mesmo sem lembrar seu nome.

É que foi Edmilson quem gravou para mim boa parte das faixas de um dos três LPs lançados pelo Flor de Cactus - aquele que contém antológica gravação de "Pepitas de Fogo", de Zé Ramalho" - naquele tempo e naquele lugar, Parelhas, mil novecentos e oitenta um ou dois. Ontem, na casa de um amigo aqui em Brasília, encontrei num blogue desses de baixar música os tais três LPs do Flor de Cactus. Meu amigo, Renato Ferraz, gravou um deles pra mim. Um disco que ouço desde hoje à tarde, quase ininterruptamente, vezes e vezes, como fazia Edmilson com todo tipo de música que lhe pediam lá na loja. Não é uma audição, é um arrepio. Vocês imaginem o que é para os seus ouvidos reencontrar um conjunto de músicas que você cansou de ouvir e cantorolar quando era alegre e jovem, mais de vinte anos atrás?

E junto com a música veio a lembrança de Edmilson, sua breve estada entre nós, sua sombra de cantor anônimo, sua rotina de gravações em K7 e seu violão discriminado e mudo. Agora mesmo, enquanto escrevo, estou ouvindo o Flor de Cactus:

"Quero ser o vento dessa montanha / arrodeando a noite, soprando no seu coração
E quando for de madrugada / Serei galo cantador"



Canta, Edmilson, na montanha que lhe couber ocupar. Aqui embaixo, sou grato às suas gravações que ajudaram a me dar uma formação musical vasta, sensível e curiosa. Quem dera todos tivessem contado com elas.

P.S: a propósito, segue o endereço do blogue onde estão as informações e os LPs do Flor de Cactus, disponíveis para você baixar sem culpa, pois que jamais lançados em CD: http://www.sombarato.blogspot.com/

2 comentários:

Anônimo disse...

Compadre, recebi os textos. Depois a gente se fala, porque só vou ler tudo à noite.
Adriano

Nildo Cesar disse...

Fazia um tempo que não lia algo tão saudoso, simples e suave: alma, paixão e coração.