quinta-feira, 27 de março de 2008

Educação e constrangimento

Na edição de ontem do jornal "O Globo", duas páginas para as "experiências que dão certo" (esse chavão a que o jornalismo não se cansa de apelar) na área da educação. Vi, à noite, no Jornal Nacional, que o assunto também é tema de série de reportagens de Cristina Serra. Acontece que saiu um relatório sobre boas experiências em trinta e tantas cidades e o jornalismo vai esmiuçando isso aí como pode. Um dessas experiências me chamou atenção - e temo pelo efeito inverso. No afã legítimo de usar de todos os recursos para manter a assiduidade de estudantes pobres nas escolas municipais, uma cidade do interior do Ceará - acho que Sobral, não estou mais com o jornal aqui do lado - apelou para avisos no rádio. Quem vem do interior sabe a importância desse recurso, especialmente por atingir a zona rural com o poder de fogo de um spam metropolitano. Pois bem: quando o aluno começa a faltar demais às aulas, a escola manda botar um aviso na emissora de rádio mais próxima. Pelo tom da reportagem, dá certo. Mas peço licença para relatar uma experiência pessoal parecida que poderia ter me levado, se não para longe da escola, decerto para uma boa distância dos livros (que não são nada mais do que outro tipo, algumas vezes bem mais eficiente, de escola)

Vale a pena abrir um segundo parágrafo: eu devia ter uns doze anos, morava em Parelhas e a cidade, naquela época, ganhou uma segunda biblioteca pública além da principal situada ali ao lado da Igreja. Era mais que uma biblioteca, uma espécie de centro de convivência com jogos e outras diversões infanto-juvenis mantido, salvo engano, pela estrutura municipal do Mobral (só por aí vocês já viram que faz um tempão). Eu costumava pegar livros dessa biblioteca emprestados. Só que eu nunca fui muito bom em devolve no prazo livros emprestados. Devolvo, mas atraso. Até hoje é assim nas locadoras de DVDs da 216/316 Norte. Então: eu estava com um livro que acho que não interessaria, honestamente, não interessaria a mais ninguém - um tal de "Quem matou Pacífico", que era o romance que havia dado origem a um filme brasileiro daquela época, algo assim. Nem o autor me lembro. Mas eu tinha aquele tipo de curiosidade: havia ouvido falar do filme, achei o livro na biblioteca e quis ler. Como sempre, passou o prazo da devolução e o livro lá em casa.

Terceiro parágro (último, prometo, sabendo que não vou cumprir mas sabendo também que nem por isso serei publicamente execrado): um dia, estou atravessando a praça principal da cidade e ouço, em alto e bom som, pra mim e para toda a cidade ouvir, na difusora municipal (difusora, meus caros, era um serviço de som que havia antes de as cidades do interior terem sua própria emissora de rádio) um aviso. Pra mim. Ou os responsáveis por mim, vai ver. Um aviso para que eu devolvesse o livro imediatamente. Uma amiga minha da época, Alda, que mais tarde se formou em Geografia e se especializou em pesquisas de opinião, também foi vítima do mesmo procedimento. Naquela manhã de domingo, a cidade inteira ficou sabendo que eu e Alda éramos dois irresponsáveis que não devolviam os livros que pegavam emprestado na biblioteca do Mobral. Claro que corri pra casa, fui devolver o livro e nunca mais cheguei perto dessa biblioteca.

Mas ou menos como aconteceu, pouco tempo depois, com meu próprio pai: durante o Plano Cruzado, ele se recusou a baixar o preço de alguma fruta ou legume que o juiz da cidade queria comprar mas julgava caro. O juiz insistiu, papai negou e no final da manhã o segundo estava preso na delegacia local, atrás das grades como um bandido. Passou o dia preso e só no final da tarde, quando o juiz voltou de uma jornada de jogo de cartas numa cidade vizinha, foi solto, em atendimento a um pedido do prefeito. Dia seguinte, o "jornalista" local, que participava dos jornais das rádios de Caicó e Currais Novos, deu a notícia: Severino Vicente foi preso por contrariar o Plano Cruzado. Papai, derrotado pela vergonha, vendeu a banca na feira e passamos alguns anos por dificuldades financeiras.

Não é um parágrafo, é, como diria um professor das antigas, um "fecho": e se o menino faltoso da escola de Sobral ficar revoltado com a exposição de seu nome nas rádios da região? Eu mesmo poderia nunca mais ter chegado perto de um livro emprestado depois daquele aviso na difusora da praça. E seria difícil arrumar livros em Parelhas naquele tempo, porque a cidade (e eu lembro de Caetano Veloso) não tinha livrarias. Nem eu teria dinheiro para comprá-los. Como diz um velho ditado, tudo demais é veneno.

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