domingo, 13 de abril de 2008

"Um beijo roubado"




Premido pela lógica de uma cinematografia e vigiado pela concorrência de seus pares, o crítico de cinema do jornal de todo dia afirma: o novo filme do cineasta asiático Kar Wai Wong, “Um beijo roubado” é uma diluição de seu talento, já que foi feito numa experiência de aproximação com a indústria do cinema norte-americano. Por isso, não tem a força da inventividade dos seus filmes anteriores e pisa macio para não espantar o público médio do circuito mundial que se alimenta da fábrica de entretenimento de Tio Sam.


Tomado pela curiosidade e vencido pela dúvida, o comentarista de cinema que vos fala foi assistir, pela primeira vez, a um filme do mesmo Kar Wai Wong – por sinal o mesmíssimo “Um beijo roubado”. E o resultado da experiência foi quase que o exato oposto do que lhe advertia a crítica do jornal. Quem está certo, quem está errado? Até que ponto o veredicto do crítico profissional afasta/aproxima, condena/absolve, legitima/marginaliza um filme, um disco, um livro? E qual a força do peso, nessa balança, do eventual desconhecimento de uma obra pelo público em geral?



Fiquemos no terreno do filme – e deste “Um beijo roubado” em particular. Mesmo tendo lido a advertência do crítico, me ofereci ao filme sem receios e dele extraí a fruição desejável de um registro cinematográfico bem formatado, às vezes irônico e quase sempre pleno de ternura visual e sensorial. O filme pode ser descrito como um conto breve, tão intenso quanto cálido. Feito com imagens que pedem aquele tipo de contemplação que, quando olha para fora, na verdade está fitando a complexidade das coisas internas.


Uma garota circula por bares e estradas várias na tentativa de esquecer um abandono. Nessa aventura emocional, encontra tipos que acrescentam mais algumas camadas à matéria de sua dor – mas a descoberta de outros tipos de descaminhos lhe cicatriza a alma. Ao lhe dizer que, na tela, tal garota é a cantora Norah Jones, eu já ganho espaço e fico dispensado de dar linhas e linhas de explicação sobre o clima desse filme. Se eu acrescentar que uma das figuras que ela encontra – uma bela e atormentada mulher, tão libertária quanto carente – é Rachel Weisz em máxima forma, em muitos momentos lembrando a Jessica Lange do pico dos anos 80, praticamente já posso encerrar por aqui. Mas ainda é preciso dizer que uma segunda companheira de desventura de Norah Jones será Nathalie Portman , outra persona cinematográfica que de uns tempos para cá já diz muito sobre um filme pela sua simples aparição no elenco.


Repare que, em um punhado de parágrafos, eu praticamente não me referi ao estilo consagrado do cineasta Kar Wai Wong, diretor também de “Amor à flor da pele” e “2046” – e a nenhum dos dois eu assisti, embora tenha lido muito nos jornais sobre eles. É nisso – nessa negligência para com o absolutismo da perfomance do diretor – que reside a diferença entre o cinéfilo desprevido e o crítico compulsório. É aqui que se entrega a chave da charada exposta no primeiro parágrafo: a crítica média avalia o filme a partir da cinematografia anterior do diretor – este é o quesito supremo, abra qualquer segundo caderno agora mesmo e confira, seja qual foi a produção. Mas o espectador médio – onde este comentarista se sente mais à vontade – reage ao que vê na tela segundo outras variantes. Quando o crítico diz que o filme é bom, mas deixa a desejar diante do que o diretor já fez, supõe que o espectador médio assistiu a todos os anteriores e está tenso de ansiedade para saber em que pontos exatamente o mesmo diretor se superou no seu mais recente trabalho. Ocorre que quem está sujeito a esse tipo de tensão é o crítico – não o espectador. E nessa hora, a cartilha habitual da crítica perde a validade.
Sem falar num certo tipo de exclusividade que este tipo de abordagem encobre, embora muito mal: aquele negócio de festejar o mais novo gênio do cinema, do livro ou da música enquanto ele ainda está restrito a um círculo fechado de iniciados; quando o mestre aproxima-se de um público maior e começa a cair nas graças de clientela mais vasta, é logo banido do clube, sob o pretexto de ter praticado a diluição de praxe.

Pessoalmente, gosto de uma crítica mais reativa – aquela luta para avaliar o filme em função do que ele mesmo propõe e provoca, cena a cena. Pensou em Roger Ebert, acertou. Gosto até da idiossincrasia eventualmente errática, porém honesta. Eu não gosto, como diz a canção cantada por Adriana Calcanhoto, é do bom gosto. A cinematografia pregressa é importante, é referencial, mas não é tudo. “Um beijo roubado”, com sua estética original diluída, sua proposta facilitada – mas evidentemente não a ponto de cair na vala comum da comédia dramático/romântica do estilão americano – pode não resultar tão prazeroso e original para o crítico ensimesmado pelo ofício. Mas pode encher os olhos e embalar a alma do espectador distraído, desprevenido, surpreendido por esse Road movie estático. A propósito, e estou me referindo a um crítico de quem gosto, no cartaz está impresso o comentário de Luiz Carlos Merten, do jornal “O Estado de São Paulo”: “Saí do cinema flutuando”. É isso o que chamo de “reação”, à guisa de mera “avaliação” de um filme.


E cinematografia por cinematografia, “Um beijo roubado” ainda teve a graça de me lembrar dois personagens inesquecíveis desse mesmo tipo de cinema que joga um olhar enviesado e poético sobre criaturas desviadas dos caminhos, digamos, naturais. Vendo os tipos de Rachel Weisz e David Strathairn (outro ator capaz de dar uma alma torturada a qualquer filme) em cena, como não lembrar de Harry Dean Stanton e Nastassja Kinski em “Paris, Texas”? É como se Travis e Jane estivessem de volta à tela, vinte e tantos anos depois de se terem reencontrado uma outra vez. Há uma cena em que ela diz a Norah Jones, para explicar o desencontro com ele: “Nós bebíamos para encontrar o amor, mas na manhã seguinte não fazia efeito nenhum”. Minha ilha de edição mental cortou imediatamente para ele caminhando no deserto e em seguida para ela arrumando os ombros no vestido sexy dentro da cabine onde se exibiria para mais um desconhecido.


Mas chega de dispersão, que a matéria da boa crítica aspira à ciência. E esta é uma última observação, que mesmo aquele outro crítico – não o Merten – reconheceu, entre suspiros de reprovação. “Um beijo roubado” é uma espécie de filme de estrada sem estradas. A viagem se dá no interior de bares e lanchonetes. A rodovia é o balcão ou a mesa de jogo. Os carros, estilhaçados em acidentes que a vida promove, são os rostos dos personagens. O trânsito, seus encontros e desencontros. E é assim que “Um beijo roubado” redime cada um dos fracassos cinematográficos que a década de 80 produziu com esses mesmos personagens e cenários. Lembrou de um certo “Bar fly”, acertou. A elegância visual de Kar Wai Wong recobre com um brilho lunar as figuras e os lugares que aquelas outras produções tentavam resgatar da sarjeta, mas, sem sucesso, só conseguiam afundar cada vez mais.

Um comentário:

Roberta AR disse...

Preciso assistir a esse filme. É sempre bom ver que um cineasta que eu gosto se renova. As sensações que você descreve aqui eu tive com os filmes anteriores, Amor a Flor da Pele e sua continuação 2046, filmes chineses com um tom de cinema noir e com atores que eu nunca tinha visto. Recomendo, são lindos.
Fiquei pensando com os meus botões que a crítica especializada tá achando que pode acontecer com Wong Kar Wai(gosto mais dessa versão do nome dele)o que aconteceu com Ang Lee quando se americanizou, mas pode ser apenas uma viagem minha.