terça-feira, 8 de abril de 2008

O horror, na tela e fora dela


Mais do que um suspense clássico, "O homem que odiava as mulheres" é um filme de terror na completa e verdadeira acepção da palavra. Um esplêndido filme de terror, capaz de soterrar com baldes de sangue e toneladas de teias de aranha qualquer vampiro ocasional, qualquer Fred Kruegger aposentado. É quase um lugar comum ler por aí centenas de comentários sobre grandes filmes, especialmente neste momento em que muitos são relançados em DVD ou em novas edições especiais recheadas de extras. Mas também acontece muito de, na hora agá, esse ou aquele não se revelar tão impactante assim quando diz a crítica canônica. Pois com "O homem que odiava as mulheres", um desses títulos relançados há pouco tempo - e logo transformado em destaque de jornais e revistas - a qualidade do que se vê na tela faz valer cada palavra impressa. É tudo aquilo que a gente, na urgência de divulgá-lo entre os amigos, economiza as palavras e chama logo de "filme bom".


Pense num "filme bom". Eficiente, inteligentemente formatado, dramaticamente muito bem conduzido. Para quem, como eu até a tarde de hoje, ainda não o viu: estamos nos anos 60, na cidade norte-americana de Boston, onde um maníaco comete uma série de assassinatos de mulheres. A polícia, capitaneada por um Henry Fonda que muito sabiamente começa a pisar o terreno da terceira idade, vasculha inferninhos, empurra contra a parede a manada suspeita de sempre - gays, queens, loucos e simpatizantes - apenas para descobrir, perplexa, que o criminoso é um embotado homem comum. Só que ele tem dupla personalidade - e seu lado normal nem imagina o que a sua porção letal anda fazendo de estragos por aí.


Livre do enredo, posso voltar ao argumento inicial e explicar porque "O homem que odiava as mulheres" é um filme de terror tão integral. O filme é claramente dividido em duas partes. Na primeira, o que nos causa horror e medo é a seqüência irrefreável de assassinatos, um trem sangrento e descarrilhado que corre pela tela com velocidade turbinada graça à técnica de montagem abraçadas pelo diretor Richard Fleischer. Ele usa o recurso de dividir a tela em quadros - às vezes dois, às vezes três, às vezes dez, dependendo da necessidade da cena, de maneira que o espectador possa ter pontos de vista privilegiados enquanto os personagens se vêem reféns do assassino serial. Mas esse é apenas um exemplo e, de chofre, lembro de outro, talvez o mais eficiente no uso dessa técnica de edição: é quando os investigadores policiais fazem uma varredura no submundo dos sub-sexos para checar a condição de vários tipos suspeitos. O filme mostra essa ação subdividindo e subdividindo cada vez mais a tela, de maneira que acompanhamos de uma forma impensavelmente contínua o caráter ligeiro - e infrutífero e frustrante - da investigação. Em síntese, o que esta primeira parte explora, com o uso da divisão da tela reforçando as impressões, é o medo da ação do criminoso, na fórmula consagrada da "próxima vítima".


Na segunda parte, que começa quando Tony Curtis - o assassino tão procurado - surge pela primeira vez em cena, beijando a filha e vendo televisão, outro tipo de medo, outra qualidade de horror se instala no filme - e este sim é o pavor genuíno, aquele que não tem cara de monstro nem garras de Fred Kruegger e tampouco precisa de efeitos especiais de som - como os usados por Alfred Hitchcock, só para ficar num exemplo de peso. É o medo de uma realidade que o ser humano não pode admitir. Não consegue, porque é uma realidade dura e cruel demais. Lembrou do caso da menina Isabella? É por aí. A realidade de Toni Curtis é que ele, sem saber, tem dupla personalidade. Na superfície, é um sujeito normal que trabalha com caldeiras. Nas profundezas, é um assassino compulsivo de mulheres. Ele é preso, a polícia enfim conclui que é ele o crimonoso procurado, mas resta ao acusado - e a nós, espectadores, que dividimos essa angústia com ele, igualmente aterrorizados - descobrir por meio de interrogatórios quase freudianos a condição de sua própria mente, assassina, incurável, perigosa e doentia.


A cena em que Curtis finalmente se enxerga como um cérebro onde cabem duas personalidades - uma delas responsável pelos crimes mais cruéis - é de pertubar o tambor do coração do espectador. Vendo o filme em casa, em DVD, num horário que, por mais quieto que seja, sempre é marcado pelos ruídos domésticos, mesmo assim meu coração disparou quando este momento em especial começou. A seqüência que altera os nervos do protagonista (melhor dizendo, antagonista) e em conseqüência os seus também, diante da tela (e imagine-se isso na câmara fechada que é uma sala de cinema), é quando Curtis tem um "insight", aquele flash-relâmpago da lembrança do momento em que deu uma "gravata" e rasgou a blusa de uma de suas vítimas. Eu ia dizer que a partir daí é adrenalina pura, mas seria cair no clichê: mais apropriado é dizer que desse momento em diante o horror - essa matéria tão tangível quanto rarefeita que se instala em momentos desesperadores da vida - ocupa todos os espaços. Plasticamente, tal horror sai ainda mais reforçado porque tudo foi filmado numa sala totalmente branca, com o prisioneiro Curtis vestindo roupas igualmente brancas. Não há mais nada com que distrair o olhar: somos nós e Tony Curtis, olho no olho, em supercloses que falam sozinhos. Logo ele, já meio entorpecido pelas lembranças mal reprimidas, tentará atacar a própria mulher, no lance que finalmente lhe dá a medida do seu drama. E não acabou: meio hipnotizado pela revelação, algo tomado pela sombra branca de sua metade assassina, ele ainda encena, quase que só com o rosto, um dos crimes que cometeu. Lembrei de Stanley Kubrick e fiquei em dúvida sobre quem influenciou quem.


Filmes de terror eficientes que fizeram muito sucesso nas décadas passadas exploravam esse mesmo recurso - o do mal que se confunde com o real. Lembrei de "A Profecia", onde havia jorros de sangue, varas trespassando padres, suicídios quase rituais mas cujo medo primordial era produzido a partir de uma realidade terrível - no caso, o fato de o diabo ter vindo à Terra no corpo de uma bela e inocente criança. Este, por sinal, é outro filme que, sem deixar de ser um produto de consumo para as salas do cinema mais comercial, capricha na maneira como põe as câmeras para enquadrar esse drama, aproximando-se e nos aproximando de personagens tomadas pelo terror - ou pelo mal, dependendo da situação.

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