quarta-feira, 23 de abril de 2008

Eu, meu pai e um disco de forró


Eu e meu pai ouvíamos "Eu e meu pai". Esse era o nome do LP lançado ali por volta de 1981 por Gonzagão, com participação de Gonzaguinha. Eu era admirador do filho – e papai era admirador do pai. E a gente juntava tudo na audição do disco que trazia na capa uma bela ilustração do sanfoneiro em branco e preto e, lá dentro, um punhado de xotes e baiões que agora fazem parte da memória que guardo dele e também de mim, naquela época. Eu e meu pai.

O disco abre com "Orélia", essa flexibilização tão interiorana de um nome garboso de mulher. Lá para diante, vinham coisas como "Manuelito Cidadão", perfil sanfonado de um boa-praça do sertão. Vinha ainda a simpatia melodiosa de "Sorriso cativante". Havia ainda distribuídos pelo disco pelo menos três clássicos – "Súplica cearense", "Respeita Januário" e "A vida do viajante", que minha mãe adorava – e se punha a cantar pela casa, enchendo tudo de um sentimento esperançoso ("minha vida é andar por esse país..."). E ainda havia uma outra faixa de refrãozinho pegajoso que me pego vez ou outra cantando por aí: "Eu sou do banco / do banco / do banco/ do Banco do Nordeste, cabra da peste / no Ceará, eu sou do Bec, do Bec, do Bec, do Bec, do Bec". Eram coisas dos tempos em que a estrutura do país ainda suportava os bancos estaduais, aqueles mesmos que os políticos quebraram sem dó nem piedade.

Outro dia, não sei se em Natal, achei a reedição de "Eu e meu pai" em CD e tremi nas bases de tamanho contentamento. Era a chance de ouvir de novo, em excelente qualidade, a trilha sonora que ponteou a minha convivência com meu pai, um homem mais talhado para o trabalho pesado de comerciante de frutas e verduras do que para confortos caseiros. Na companhia dele, circulei por estradas entre sítios e feiras, ele na boléia e eu na carroceria da caminhonete fretada. Mas eram passeios de criança, que se há algo de que ele sempre fez questão foi de que eu estudasse para ter oportunidade de viver de ofício menos cansativo que o dele.

Por falar em cansaço, era nos finais de tarde que meu pai parava em casa. Pegava a cadeira de balanço de fios de plástico, levava lá pra fora – morávamos numa casa de esquina e em rua sem calçamento ou calçada – e escorava os pés num toco que ele mesmo colocou na quina da casa para evitar que burros e cavalos estragassem o reboco. Assim, espichado, erguia à altura do olhar o rádio de pilhas, ainda naqueles modelos meio grandes, e saía à procura de estações que tocassem aquele forrozinho de fim de tarde (e eram tantas). Assim encerrava seu dia, ouvindo Gonzagão, Elino Julião ou Seu Vavá (Genival Lacerda, para os não iniciados, outro ídolo que tínhamos em comum, pode acreditar). Mal a noite caía, ele ia dormir, para acordar antes do sol nascer no dia seguinte. Já "Eu e meu pai" era ouvida depois do almoço, aos domingos, na radiola humilde como tudo o mais lá em casa.

Lembrei de "Eu e meu pai" hoje porque estava escutando, depois de muito ouvir falar, o CD "Samba de Latada", em que Paulo Moura divide as faixas com um descendente musical de Gonzaga, Josildo Sá – e é dos bons, viu? Dois amigos, Renato e Silvério, já haviam me recomendado o disco (um deles copiou pra mim só pra me convencer) e por falta de oportunidade ainda não havia ouvido. Pois bastou botar o bicho pra tocar no computador para imediatamente a audição me levar ao velho disco de Luiz Gonzaga. É a mesma sonoridade, a mesma tessitura de sanfonas e triângulos, a mesma lábia melódica da canção mais nordestina. A mesma música de fim de tarde que encerrava os dias do meu pai.

Se ele fosse vivo e a gente ainda morasse lá naquela casa de esquina, hoje eu ia chegar do trabalho e puxar ele pelo braço para perto do aparelho de som e botar pra tocar esse "Samba de Latada". Eu gostei, meu pai ia gostar. A gente conversava pouco, convivia só pelo tempo que o trabalho dele deixava, mas nem por isso deixava de ter umas paixões cotidianas em comum. "Eu e meu pai" era uma delas. "Samba de Latada" tinha tudo para também ser. Quem sabe, é.

3 comentários:

Francisco Sobreira disse...

Tião,
Uma das maiores alegrias que um homem na sua idade, e mais ainda na minha, que sou mais velho do que você, é reencontrar um disco que fez parte da sua infância. Eu já experimentei isso e também com relação a um filme. Olhe, se não estou enganado esse Josildo apareceu, há poucos dias, no programa Sr Brasil, do Boldrin, juntamente com o grande Paulo Moura. Acho que era ele e tive uma boa impressão dele. Um abraço saudosista.

Moacy Cirne disse...

Há muito que Paulo Moura é uma das minhas admirações musicais. Mas não conheço Josildo. Chegou a hora de conhecê-lo, então. Um abraço.

Anônimo disse...

Que belo texto, que emoção doce e terna e que memória linda, essa da casa de esquina, sem calçada ou asfalto, com os burros e cavalos a ameaçar o reboco... que belas imagens vc me trouxe.... obrigado.