quinta-feira, 3 de julho de 2008

The end

Se fosse um livro ou um filme, seria um grande final. Mas embora se trate de manifestações de outra natureza, também foram um capítulo final digno de nota nas nossas melhores memórias narrativas. Não estou falando da literatura de fato, nem do cinema convencional. O assunto aqui é a gramática expositiva do futebol e linguagem da realidade mais cruel. Estou falando das duas maiores notícias do dia de ontem, quarta-feira, 2 de julho. Notícias que se misturaram nos noticiários do fim de noite – a derrota do Fluminense para a LDU na final da Libertadores e a libertação de Ingrid Betancourt na Colômbia.

A narrativa do futebol teve um brusco prólogo marcado pelo gol inesperado do adversário, viradas vibrantes protagonizadas por Thiago Neves – um dos grandes personagens da noite, que também teve outros -, vales de palavras desperdiçadas na forma de gols prontos e perdidos, ganchos irresistíveis no entra-e-sai de pausas, tempos, contratempos e shows de intervalo, um epílogo desesperador dividido em duas módicas porções de 15 minutos de ansiedade e, ao final, a figura dramática absoluta dessa forma de expressão humana chamada futebol – os pênaltis, sempre eles.

Não tenho maiores ligações com futebol, embora, quando perguntam, me apresente como torcedor do Fluminense. São coisas de eras perdidas, quando eu era um menino, Rivelino era um herói quase stalinista em sua imponente figura setentista e a rua inteira era tricolor. Mas tenho atração por eventos que reúnem o país diante dos aparelhos de televisão. Gosto da sensação de dividir com a massa a participação nessas grandes audiências nacionais. Por isso, assisti ao jogo de ontem – sem, naturalmente, ter acompanhado um só dos capítulos que antecederam o desfecho da noite passada. Me interessava a sintaxe do enfrentamento, a prosódia do evento, aquele condição que faz de uma partida de futebol muito aguardada um momento de transfiguração para jogadores e de êxtase para espectadores. Para além da competição, o saldo da nossa pobre e poética humanidade.

Não posso reclamar. Nunca vi 45 minutos passarem tão rápido. Para comparar com uma área que me é cara, faz tempo não vejo no cinema um épico com tal fôlego, tamanho esforço. Com páginas e mais páginas de palavras dribladas no idioma gingado de um adversário sorridente e assustador já a partir do próprio nome – Guerrón. Com a contribuição errática do árbitro que parecia deliberadamente ratificar o xingamento mais comum de todas essas arenas. Com os deslizes igualmente humanos – e tão irritantes no momento em que se dão – de um coadjuvante Washington, predestinado protagonista do instante da derrota. Com até mesmo a obviedade mais ululante, a do impedimento que não existiu e aquela outra, a do gol anulado.

Esvaziado o Maracanã, equatorianos esquecidos, entra o telejornal com a súmula de uma outra narrativa em dramáticos instantes finais. Desta vez, é um final feliz, com o desfecho do que já parecia um seqüestro secular. Há quantos milênios mesmo Ingrid Betancourt estava enfronhado no mato, em poder das Farcs colombianas? Há quantos séculos esse grupo está amarrado à face mais sombria de nossa Latinoamérica? É coisa de muito tempo – não é nem mais assunto para jornalista apressados, é tema para historiadores entediados.

A libertação parece funcionar como a queda da última peça do enferrujado relógio histórico do grupo guerrilheiro colombiano. No refúgio datado do último combatente, as jornadas diuturnas do sol e da lua não servem mais para contabilizar essa matéria tão prática quanto imaginária chamada tempo. Compõem apenas ciclos viciados, rotações imóveis, anúncios naturais e peremptórios do fim que chega tarde. O solo da floresta latina logo vai biodegradar os restos dessa engrenaram viciada, embora as injustiças sobre as quais ela se criou e se apoiou continue girando suas rodas, tonificando suas molas. Mas nas clareiras dos embates políticos há um outro maquinário instalado em terreno novo, sujeito à busca de uma engenharia política melhor. Nela, de nada valem as velhas ferramentas – gigantescas, totais e pesadas. Chaves que não cabem mais nas delicadas fendas e elaborados encaixes das virtuais máquinas dos dias atuais.

Dois finais, sem que o espectador possa escolher alternativas. Experimente se deixar pisotear pela dor de um estádio de futebol inteiro. Permita-se, camisetas ideológicas à parte, comemorar uma liberdade superior às selvas humanas. Alguma coisa terminou ontem, no exato instante em que outras, decorrentes daquelas, nasceram. Uma nova geração de torcedores, uma outra política, possível. The end. E começar de novo.

3 comentários:

Moacy Cirne disse...

Tião: Sou tricolor há séculos e séculos. O Brasil não existia e eu já era tricolor. Vou sempre ao Maracanã. Canto o tempo todo junto com a torcida. Não perdi um só jogo da Libertadores. Ontem, depois da mais emocionante festa que já vivi em 40 anos de Maracanã, veio a tragédia. Ao meu lado, a minha filha de 21 anos chorava como uma criança. Assim como choravam crianças de 10, 11, 12 anos e até mesmo alguns senhores de cabelos brancos. Assim é o futebol. Assim é a vida. Um grande abraço.

Anônimo disse...

apesar de rubro-negra, queria que o flu ganhasse. queria também que nélson rodrigues estivesse vivo, pra ler o que ele escreveria sobre o jogo.

Anônimo disse...

Sebá:jogos como esse do Fluminense explicam, um pouco, porque gente de teatro, como Nelson Rodrigues, e você também com essa visão particular partida no dia da Betancourt, gente de cinema, de literatura e do jornalismo considera o futebol uma arte - é vida, tragédia e glória em 90 minutos, tempo de uma peça ou de um filme no cinema. Parabéns pelo seu texto e um grande abraço!!