segunda-feira, 14 de julho de 2008

Deserto amado

Quando nasci, já senti o cheiro de pó, seco, quente, a matéria oposta ao mormaço que queima as dobras das palmas da mão. O ar chicoteado por rajadas de vento fervente do meio-dia, que vinca o rosto, escava máscaras na face dos meus irmãos. Era noite, mas ainda assim, quando do meu nascimento, o sol torrava seus raios adormecidos, prontos para despertar no primeiro galo e despejar sua fúria amarela na primeira manhã. Eu era um pequeno ser vivo irrompendo no chão seridoense. Naquela noite, na manhã seguinte, todos os dias, até hoje, seridoenses pipocam na paisagem encandiada por tanta luz, tamanho calor, brutal desmatamento. Um oitão vale ouro em terras assim.

Sou um que surgiu ali e se criou. Como eu, há muitos outros de mim – inclusive os que, muito mais fortes que eu, lá permanecem – austeros, firmes e sorridentes. Gilton, Antônio, Taísa, Augusto. Como eu, há muitos outros de mim que também se ausentaram, agoniados de ver outras terras, peneirar outras poeiras. Ítalo, Zuleica, Moacy. Os nomes vão enchendo os horizontes, aqui, lá, e a dança da migração levanta seu pó sem no entanto encobrir nunca a paisagem primeira. Boqueirão, rio, capelinha na serra – o piquenique à sombra da velha oiticica.

Hoje é oiticica com buriti, ladeira do boqueirão com eixo monumental, ginásio estadual com campus universitário, monsenhor Amâncio Ramalho com Dom Bosco. Subir a ladeira do sol e descer a ladeira do Ovidão, pegar a tesourinha da 316 Norte e ir parar na casa da minha avó no Beco Estreito. Transitamos da poeira ao mar, do asfalto à grama – seridoenses surgidos daquele chão, nômades convictos, portadores de um catecismo regional caro a quem o detém e de força desconhecida para quem nunca por ele rezou.

Está num blogue amigo: relatório do governo reafirma o que já se sabia, que a região do Seridó é uma das mais secas do país e das que se encontram em situação mais grave quando se fala em algo básico como é a capacidade de um lugar de se fazer habitável. Um território pronto para virar deserto. Na maioria dos municípios, a expectativa de vida está abaixo da média nacional. Neste país sentimental para tantos, vivem 30 milhões de brasileiros, dos quais 90% sobrevivendo com menos de R$ 75,50 por mês. Eu poderia ser um deles – digo, eu SOU um deles. Ítalo é um deles, Gilton é um deles, Augusto é um deles. Uns continuam lá – e, lendo tais relatórios, me pergunto o que diriam quando confrontados com esses levantamentos.

Certamente não se veriam, Antônio e Taísa, representados por realidade estatisticamente tão redutora. Mas é que lá, como aqui – triste entorno de Brasília com seus catadores de lixo de Valparaízo; triste peleja dos subúrbios natalenses – há uma bela, viva, teimosa e insistente diversidade que escapa ao corte sociológico. É por isso que, quando o relatório do governo diz que lá, no Seridó (e nas regiões de Irauçuba-CE, Cabrobó-PE e Gilbués-PI) “a vida do brasileiro é a pior e a mais difícil”, nem parece. Porque não é – mesmo. E é – claro. De maneira que, sendo, por vezes, tão ruim, ao mesmo tempo pode ser arejado como a sombra de um oitão, abrigado sob um paredão de reboco meio comido, com a proteção que só as casas velhas dão.

Estou aqui, Gilton está em Parelhas, Ítalo em Recife, Augusto já passou por Campina, Taísa gostava de Currais Novos; e o fato é que, saqueado pela falência do algodão, desmamado pela pecuária igualmente infeliz, e derretido pelo calor das cerâmicas que mastigam lenhas, o Seridó esturricado e feliz vive plantado no solo interior da gente. Indiferente ao relatório do governo, alienado de matemáticas tão opressoras quanto mais exatas sejam. Felizes ao saber do nascimento de novos seridoenses – lá mesmo ou nos galhos de suas árvores partidas, Cecílias e Bernardos frutificados em compotas temporais. Lá mesmo, outros seridoenses vão brotando, um Rafael que desafia a álgebra do especialista, expondo-se à provação, espantando o deserto que se aproxima cada vez mais.

Cada um que nasce é um quilômetro a menos de desertificação – um arbusto abusado desafiando o sol, gaiato como um bom caicoense, marginal à sua maneira, outsider sem grife, viajante nato dentro de seu próprio território. Que a terra seja deles, como o ar que respiramos.

Um comentário:

Anônimo disse...

"Cada um que nasce é um quilômetro a menos de desertificação..." - bonito, sebá.