Em 1984, surgiu uma tremenda novidade em forma de livro e com nome de mulher na praça natalense. Era "Marrons Crepons Marfins", o petardo além-feminista da nossa sempre bela e inspirada Marize Castro. Aquela voz, entre libertária, sensual e - também - angustiada, renovou o cenário poético potiguar, imprimindo coloquialidade e revestindo de uma nova precisão a poesia feita por mulheres no estado. Dizendo assim, parece que Marize apenas tirou o pó de um departamento da poesia potiguar, aquele feito pelas mulheres. Mas, não: o livro era tão novo, tão verdadeiro, tão vivo que, relido hoje, pode-se dizer tranqüilamente que tornou-se um marco de toda a poesia feita no RN, independente do fato de ser assinada por homem, mulher ou qualquer um dos demais duzentos sexos. O clichê é inevitável: "Marros Crepons Marfins" nasceu clássico.
Este ano, ainda agora em julho, uma outra sensível novidade desceu às prateleiras das livrarias da cidade, em forma de livro de bolso e com nome de mulher - um nome, por si só, ainda mais sugestivo, com suas três letras já paridas em forma de verso autônomo. É "Menina Gauche", o minimanifesto poético de Ada Lima, a mulher de verso afiado disfarçando-se por trás de um título-armadilha. Basta ler o livro ainda recém-lançado para abrir o bocão e gritar novamente o mesmo (e bem-vindo) clichê: "Manina Gauche" nasceu clássico. A poesia que ilustra a contra-capa já anda por aí, em colunas de jornal, blogues amigos e antenados, nas bocas que repetem seus versos tão metalinguísticos quanto carnais: "Golpeia / a folha / com fúria: / a carna / do papel / não sangra."
Na minha leitura pessoal, que tem a ver com o patrimônio que acumulei ao longo da vida lendo essas poesias e essas mulheres, encontrei outros elos entre a estréia de Marize e a chegada de Ada do que o que já está exposto nos dois parágrafos anteriores. É como se Marize, ao revitalizar a voz feminina na poesia potiguar dos anos 80, tivesse espalhado pelas páginas e pelo ar uma torrente de informalidade poética, de descompromisso afirmativo que, uma vez realizado, permite que, agora, Ada pratique uma poética mais voltada para a criação de sugestivas imagens e para o estudo do potencial do verso. A nova poeta Ada não precisa mais espanar a prateleira do gênero - um trabalho pesado que a antecessora Marize já fez com luvas vermelhas e irônico perfume de jasmim - e pode, então, dar-se ao prazer de resensibilizar, até pela via do feminino, a construção do discurso.
Assim: a Marize de "Marfins" invocava Cary Grant, ícones pós-modernos, belle époque, túnicas indianas, minotauros e outros apetrechos verbais para compor uma poesia entre terminal, escandalosa e carente. Uma poesia com o espírito dos anos 80, quando todos éramos um pouco dark e o suicídio, um apelo distante, porém charmoso - uma imagem, válida. O resultado eram versos assim: "A fúria que há em mim / não sacraliza nem ousa / Serpenteia pelos séculos / rompendo finas louças.". Ou assim: "Sagaz minotauro / reli teu recado / me perdi em pecados.". Ou assim: "Enquando morremos / nesses macios lençóis / de escarlatim / alguns pares / de esparpins / quebram os saltos / por algum amor / assim".
Lendo a Ada de "Menina Gauche", é possível ouvir os ecos daquela Marize, reprocessada mais de duas décadas depois em versos assim: "Uma ninfa e um marujo / habitam em mim. / sinto fome / de algo / que não tem nome. / Tenho sede / de coisas inexistentes / que vivem nas pontas dos meus dedos / palpitantes / e suados / como alguém em derradeira agonia." Ou assim: "Perdi a chave do baú. / E agora, coração? / Não há quem fale por ti." Ou assim: "Apenas deságue em mim / e faça surgir / um coração / em meu ventre.". Ada vai além e engendra imagens inesperadamente interessantes, num efeito tão mais impressionante pelo fato de precisar gastar pouquíssimas palavras para tanto. Vejam: "Pisou-a / porque o asfalto / não é lugar para flores" (impossível não lembrar da "rosa do asfalto" do poeta Carlos). Há ainda uma terceira vertente - além do aspecto feminino reliberado e da criação sintética de imagens já comentados - que é a pura reflexão sobre o sentido, algo inapreensível mas sempre fascinante, do exercício da poesia. Como em "Dessossei a poesia / e deitei-me / sobre ela. /À noite, / tive sonhos mudos."
E uma última analogia entre essas duas belas figuras que marcam duas gerações com sua presença humana e poética: a felicidade de produzir um aforismo exato. Está em "Marrons": "A dor é um anjo por si só". Está em "Menina Gauche": "As palavras preferem os poetas tristonhos".
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