“O Evangelho segundo São Mateus” (Pasolini, 1964), é bem um produto de seu tempo. Filmado com elenco de não-atores, despido de qualquer traço de realismo épico, é um filme tão descarnado, tão propositadamente não-profissional, feito com tamanha aversão à técnica que, no limite, transfigura tudo como poucas vezes o cinema convencional consegue. Mas é um filme de seu tempo, do tipo que somente os anos 60, com sua mistura de conflagração social e espírito revolucionário exposto ao auto-sacrifício, conseguiria produzir.
É esteticamente menos alegórico do que se espera e liturgicamente mais agressivo do que se imagina. Os melhores momentos são os sermões exaustivos e verborrágicos de seu Cristo, que funcionam como chicotes verbais para-religiosos. Soam como discursos nos auto-falantes de uma era auto-imolada. Como a música daquele tempo, os sessenta, com suas harmonias transgressivas e suas intenções de igualdade melódica. A crucificação propriamente dita, que normalmente é o forte em filmes ditos bíblicos, fica em segundo plano quando comparado a tais sermões. É como se o diretor dissesse: o verbo fala mais alto que o sangue, numa sentença que contraria o fundamentalismo cristão de Mel Gibson.
Do que se vê, transparece também uma outra fidelidade à tragédia bíblica: ao assistir ao filme, pressente-se ao longe o quando pode ter sido difícil a adesão inicial àquele Cristo nem um pouco bondoso, àquele pregador de ameaças justificadamente peremptórias. As cenas mostram os apóstolos sendo arrebanhados num estado de quase transe – como se essa fosse a única forma possível de adesão naquele tempo e lugar, tamanho o absurdo da proposta de tal profeta. E tudo o que o nosso manso cristianismo de sacristias interioranas nos entregou como doces palavras de catecismos de bolso, de repente retorna na forma de ensinamentos quase blasfemos de tão impensáveis para a humanidade da época (pra não falar da atual). Sentenças do tipo “amar ao próximo sob todas as barras”, “oferecer a outra face quando a porrada vier”. O cristão das primeiras levas tinha que ter costas de aço e mãos de pedra.
“O Evangelho Segundo São Mateus” exibe um Cristo bruto, que conta parábolas como quem vomita impropérios. Um Jesus fisicamente frágil e espiritualmente em fogo, que incita a compaixão humana com uma afiada adaga verbal na ponta da língua em brasa. Teste sua religiosidade submetendo-se ao seu corte – ou passe seu ateísmo de chumbo sob a lavra desse Jesus-dragão. Muito provavelmente você vai se ver refletido nos muitos e muitos rostos que ilustram, comentam, sacralizam ou humanizam o filme, em closes expressivamente vivos que surgem na tela o tempo todo, costurando os fios da história em questão.
2 comentários:
Oi, cara, um dos melhores textos que já li sobre O Evangelho de Pasolini, que considero uma obra-prima. De resto, não estou muito interessado nos fliperamas da vida literária, embora reconheça seus charmes. Abraços.
Adorei o texto sobre um filme que adoro. Abraço, Tião.
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