segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Vou te contar...


Neste ano de muitas comemorações pelo aniversário redondo da bossa nova, volta aquela pergunta a esta altura tão retórica quanto vazia: onde você estava, o que fazia e o que pensava do mundo quando ouviu pela primeira vez, no rádio, naturalmente (ou na difusora da praça da sua cidadezinha!), João Gilberto cantando "Chega de Saudade".

Chega dessa pergunta, não é não? Ou então chega dessa resposta, porque dizer onde se estava, o que se fazia e o que se pensava do mundo quando se ouviu pela primeira vez João Gilberto cantando "Chega de Saudade" virou um item indispensável no currículo prafrentex de tudo quanto é gente que quer aparentar modernidade perene.

Pois eu vou correr o risco. Mas, só pra contrariar, revelarei - o que também não será novidade se você contar que estou com 42, embora com aquela cara de uma década a mais - que não era "Chega de Saudade" a primeira canção que escutei na primeira vez em que ouvi João Gilberto. Os tempos eram outros, o local da audição não tinha nada a ver com o calçadão de Ipanema, e a canção chegou aos meus ouvidos por puro acaso. Doce acaso, devo acrescentar só para manter um pouco mais esse falso suspense.

Foi em 1980, no sertão do Seridó, e a voz do homem chegou a bordo dos sulcos de uma coletânea em vinil. Chamava-se "Disco de Ouro" e era um lançamento dos mais oportunistas. Trazia os sucessos do momento editados pela mesma gravadora - e alguns nem tão sucesso assim, mas afinal era preciso vender o peixe da velha Polydor (lembra?). Abriu com Baby Consuelo cantando "Menino do Rio", mas lá pras tantas vinha aquela deliciosa estranheza que era Elis Regina cantando "Altos e Baixos". Que desconcertante antimelodia percorria a voz da nossa maior cantora, naquele Sueli Costa ("Altos e Baixos" é Sueli Costa, não é? Se não for, tinha tudo pra ser) lancinante como dor de dente entorpecida com uísque. Também tinha Belchior na marcha paranóica "Medo de Avião", canção de êxtase disfarçada de temor.

E, ali no meio de campo, como todas as outras violentamente cortada antes da hora para que coubessem mais músicas no mesmo disco, "Wave", com a assombrosa mansidão de João. Como eu ouvi aquilo sem saber quem era João, sua fama, suas contribuições para a música brasileira, sua técnica, sua emoção e a poesia afirmativa e renovadora do seu canto e do seu violão. Eu, moço, ouvia João da maneira mais bruta - direta, sem comentários, sem indicações de amigos, sem um relógio histórico-musical que recomendasse e legitimasse aquela maneira de fazer música.

Sou grato ao acaso por aquela ignorância. Nunca mais me aconteceu coisa igual. Nem "Chega de Saudade", quando enfim fui ouvir, em data que não lembro e momento impreciso, teve mais o mesmo impacto. Vou te contar: meu "Chega de Saudade" sempre foi, na verdade, "Wave" - que os olhos já não podem ver. Coisas que só o coração faz entender.

Um comentário:

Francisco Sobreira disse...

Tião,
Quando Chega de Saudade foi lançado, eu era estudante em Fortaleza, morando numa pensão. Me lembro, mais ou menos, do impacto que a música causou, menos por ela, do que pela voz e interpretação de João Gilberto, tão diferentes dos cantores que faziam sucesso na época. Olhe, coloquei hoje no Correio 2 livros para você. Peço acusar o recebimento deles. Um abraço.