Nestes dias inclementes de setembro, Brasília não é só a capital do país. É a capital da folha seca. É como se todas as folhas secas do mundo repentinamente decidissem se reunir aqui, em congresso de amarelo-cinza. Dispensam aeroportos, mas chegam pelo céu. Em torrentes calmas, num desabar que muitas vezes lembra uma valsa dançada sem música. Uma chuva, de outra natureza. E que não cai em espirro líquido sobre o chão, mas resvala em câmera lenta, embora em massa, como se fora uma frota de objetos voadores não identificados em efeitos especiais de filmes de ficção científica. Uma vez pousadas no barro vermelho do planalto, as alienígenas e invasoras folhas secas têm curiosamente a capacidade de fazê-lo mais telúrico ainda, esmaecendo tudo com uma colocação meio sépia, muito seca. Amarelo nem um pouco manga - amarelo deserto.
Nas ruas, você só precisa ir à esquina (elas existem, cuidado com as lendas), à padaria ou ao ponto de táxi para notar que a invasão se consumou. Folhas secas dão seus rasantes indiferentes ao deslocamento da população local. Nos bosques urbanos que são muitos, entre edifícios e postos de gasolina, que também são muitos, as folhas secas vão se acumulando em camadas como se tivessem o plano traçado e muito bem arquitetado de encobrir, lenta mas inexoravelmente, tudo, até o último andar das torres do Congresso. A verdadeira guerra dos mundos - há mais vida inteligente numa inerte folha seca do que supõe o vã Orson Welles que há em cada um de nós. Indiferentes ao perigo extraterrestre, as crianças gostam de brincar de escorregar nas muitas camadas deste segundo chão de folhas secas - solo farfalhante de colchão de secura, o algodão que tal estação planta sob os 15 por cento de umidade a que cada morador de Brasilia tem direito todo setembro de cada ano.
Não é incomum que o habitante local, sitiado por ar tão seco e chão tão desidratado e quebradiço, veja-se tomado por mirações psicodélicas - fenômeno perfeitamente natural quando se está nas ruas no horário compreendido entre 12h e 16h. Nessas horas, já me aconteceu de imaginar que cada uma daquelas tantas folhas secas seja, na verdade, um punhado de palavras disfarçadas que, agregadas no chão dos canteiros, formam frases de tradução impossível para quem não domina as cem mil forças da natureza, terrestre ou não. Quando é assim, leio de tudo na folha que cai ou na folha que descansa no chão. Sentenças sobre a vida e a morte em forma de gravetos a um estalo da decomposição total. Poemas vegetarizados em fibras esturricadas do que um dia foram folhas vívidas de boas intenções verdes. Ramos emagrecidos e vacilantes que ensaiam um discurso sobre o tempo mas desistem ante a seca constatação de que não vale a pena procurar palavras para expressar tamanho e feliz desânimo. Livros são escritos neste rumorejar hermético de antiflorações de setembro. Livros são apagados pelo mero poder de uma simples lufada de vento quente. Um escrevinhar que dura até meados de outubro - e lava seu palavreado de vez com as chuvas verdadeiras de novembro.
P.S: Cecília, dia desses, na caminhada que faz da nova escola onde agora freqüenta o Maternal II, atravessando calçadas simpáticas, mendigos bacanas, pequenos bosques planejados e uma avenida movimentada, olhou para o alto e disse que as árvores choram quando as folhas caem. É a segunda imagem que ela organiza na cabeça. A outra, quem leu aqui deve lembrar, é a "lua quebrada", como ela chamou a meia lua de uma noite especial.
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