segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Dança da chuva em Brasília


Na postagem anterior, o Sopão sugeria, com alguma sutileza, que uma visita a Brasília pode não ser exatamente uma passagem para o tédio como supõe a vã e gasta imagem que a capital do país transmite aos cidadãos que não moram aqui. Pois bem: tem mais. Neste final de semana, se a gente tivesse encomendado a Rejane uma bela programação urbano-cultural para toda a família, talvez ela não tivesse caprichado tanto. Duvida? Experimente ler esta outra postagem até o (distante) fim.

Sábado de sol forte, umidade baixa e um estranho ar de que, sim, apesar da seca inclemente típida desta época, havia uma possibilidade de chuva no ar. Veremos. Saímos de casa na hora do almoço, devidamente resolvido numa churrascaria acessível do shopping Pátio Brasil. Para digerir, o primeiro item da agenda providenciada por Rejane: visita à Feira do Livro, um evento já tradicional em Brasília, que acompanhamos desde que aqui chegamos, já lá se vão uns 13 anos. A Feira do Livro acontece, já há algumas edições, nas amplas calçadas desse mesmo shopping onde almoçamos. Ao contrário dos eventos do tipo que acontecem em Natal, por exemplo, tenho que dizer que é mais uma oportunidade de adquirir livros interessantes por um bom preço do que um espaço para discussões literárias ou afins. Há palestras, homenagens, sempre um escritor tomado como tema (este ano foi o poeta Thiago de Melo), mas o forte mesmo é o consumo.

E não é que seja ruim: saí da Feira do Livro deste ano com um exemplar do Dicionário de Cineastas de Rubem Ewald Filho (um crítico que não está entre meus preferidos, mas é sempre uma referência) por módicos R$ 10,00. Também comprei uma coletânea de textos de teatro de Miguel Falabela e Maria Carmem Barbosa (tenho grande curiosidade pelos textos porque das poucas peças de teatro a que assisti, uma foi "A Partilha", de que gostei e que infelizmente não está no livro) por ainda mais módicos R$ 5,00. E ainda levei, de lambuja, por igualmente módicos R$ 5,00, um exemplar de "O quieto animal da esquina" - coisa fina, biscoito gaúcho de João Gilberto Noll, que é pra vocês não largarem a leitura por aqui achando que meu nível de consumo, embora econômico nos gastos, está anêmico nos conteúdos.

Depois da Feira do Livro, aí pelas 17h, já tínhamos outro compromisso marcado por Rejane: ir ao Conjunto Cultural da Caixa Econômica para assistir ao espetáculo "Cantigas de Trabalho", do grupo de artistas e pesquisadores "Cabelo de Maria". Como o nome indica, é um pocket show tão mínimo e artesanal quanto verdadeiro e próximo de quem o assiste, feito todo sobre canções tradiconais usadas em comunidades pelo Brasil afora enquanto se realiza algum trabalho - debulhar milho, pilar sementes. Uma apresentação de ar brejeito e sonoridade toda acústica, quase uma canção de ninar para adultos, poucos mas entusiasmados, reunidos num espaço único que rende um parágrafo.

Há 13 anos em Brasília, o fato é que nunca havíamos ido ao Conjunto Cultural da Caixa, composto por teatro e café num prédio e, no outro, logo em frente, espaço para exposições e, como vimos no parágrafo anterior, palco improvisado. Ficamos espantados com a beleza do interior do prédio-sede da Caixa Econômica em Brasília. Por fora, é um prédio meio feio, redondo, que pela forma se destaca na paisagem da cidade - meio que compondo um paralelo com o prédio do Banco Central, aquele que parece formado por caixotes pretos suspensos. O da Caixa parece uma... caixa d'água comum. Isso por fora, porque lá dentro a coisa muda de figura.

Acontece que os blocos de concreto gigantes que, superpostos, dão uma forma arredondada ao prédio da CEF, são na verdade molduras para um conjunto de imensos vitrais. Por fora isso passa derpercebido, mas quando você entra - especialmente se for no final da tarde, com o sol naquele amarelado típido da seca brasiliense - a impressão é de que se está penetrando numa catedral de cristais coloridos. Sombras de vários tons preenchem o largo vão interno, de onde parte uma escadaria em espiral. Lembrei, assim de relance, do Mercado Municipal de Fortaleza. Mas aqui na CEF há os vitrais gigantes, cada um representante um estado brasileiro. O de Minas é de babar, com aqueles profetas do Aleijadinhos estilizados se derramando em acrílicos trespassados pela luz da tarde. O do RN, dada a idade do prédio que, não sei mas imagino datar dos anos 70, mostra apenas pescadores, jangadeiros, salinas e afins - ícones de uma era pré-Ponta Negra e turismo de massa.

Vistos de longe, o conjunto de vitrais enche os olhos do visitante. Vale a pena passar por lá mesmo que não esteja em cartaz um show como o "Cantigas de Trabalho". Infelizmente, não levei a máquina fotográfica para completar a postagem com uma imagem que leve o leitor do Sopão visualmente a este espaço. Se encontrar na internet, prometo colocar. E se eu disser que, à noite, ali ao lado, no teatro, iria acontecer mais um espetáculo da "Cena Contemporânea", o festival de teatro que nesta época movimenta a cidade você vai entender melhor porque aquela história de capital do tédio é coisa dos anos 80 (se é que era mesmo, vide o rock brasiliense de então).

Mas a programação cultural não acabou aí, não. Noite instalada, seguimos para o final da Asa Sul, onde acontece durante todo este mês a tradiconal quermesse do templo budista da cidade. Brasília, é preciso que se diga antes de mais nada, adora uma quermesse. Aqui, quermesse não é algo visto como festa de carolas como acontece em qualquer outro lugar do país. Aqui, quermesse é pop, meus amigos. Nada mais pop, então, do que uma quermesse promovida por um templo budista. A fila do macarrão ia-qui-sso-ba era quilométrica - mas você olhava para as caras das pessoas esperando e elas tinham aquele arsinho de riso meio dalai-lama. No palco, garotos e garotas faziam exibições de karatê. Nas bancas, toda sorte de mercadorias de ascedência oriental.

E, acreditem, no céu, inesperados pingos de chuva em plena seca de Brasília. O dia seguinte, domingo, amanheceu brancão. Logo o brancão, qual espuma redentora apertada pelas mãos de um deus piedoso, transformou-se em chuva em pontos localizados da cidade.

Choveu lá em casa, choveu forte ali em frente ao Conjunto Nacional, o ar da noite estava bem melhor. Quem sabe, resultado da dança da chuva que foi a programação que Rejane bolou pra gente no fim de semana.
Legenda: na foto, já meio antiga, o setor bancário com destaque para os caixotes negros do BC

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