Nossa amiga Jô me entregou o livro com uma cara brava e uma recomendação ao contrário: tome, e veja se gosta, ou se eu é que não entendo mais nada. Não foi bem assim, com essas palavras exatas, mas me dou o direito de literarizar um pouco a situação para que vocês entendam melhor. O livro era “Reparação”, de Ian McEwan, elogiado pelos mais respeitados críticos literários. E o problema é que Jô – nossa amiga Joelita, que trabalhou comigo no Correio Braziliense quando cheguei a Brasília e agora trabalha com Rejane no Unafisco – destestou cada página, a despeito do que leu em resenhas e mais resenhas de um culto quase acadêmico à prosa do autor britânico.
Agora vocês vejam a minha situação: junto com o livro, Jô me entregou também um envelope pardo, fechado, dentro do qual havia dois textos: um era uma resenha do livro publicada no finado site Nomínimo; o outro era uma espécie de carta da prória Jô, explicando pra mim por que não havia tolerado o livro e confrontando a palavra do crítico do Nomínimo com as impressões dela própria. Mas quando recebi o envelope, não sabia do seu conteúdo, porque Jô, além de tudo, advertiu-me: eu só deveria abrir o envelope quando tivesse acabado de ler o livro.
Duvido que algum de vocês já tenha sido incumbido de semelhante tarefa. Se foi, deve imaginar como eu me sentia diante disso tudo: e agora? Se eu gostar do livro e confirmar a impressão dos críticos, Jô vai no mínimo me riscar da lista dos amigos dela; e se, ao contrário, eu também ficar desapontado com um livro tão elogiado, então deve haver alguma coisa errada com os críticos mais afiados, os escritores mais celebrados – e eu e Jô é que somos dois incompreendidos.
Comecei a ler “Reparação” e, para ser coerente com o espaço de uma postagem de blog, resumo minha impressão: o livro tem uma grande tensão interna ao contar como uma adolescente sublima uma atração sexual pelo namorado da irmã mais velha fazendo uma acusação grave – a de que o rapaz, por sinal o filho de um serviçal da família, estuprou a prima de ambas. A denúncia e seus desdobramentos – e o título do livro se refere ao esforço inútil de anular seus efeitos – se dá a partir de 1935. E o problema – acho que foi isso o que irritou Jô – é que a narração, além de demorada pela necessidade de explorar as sutilezas dos sentimentos da adolescente, de sua irmã e do pobre rapaz sob acusação, tem um floreado esquisito, que às vezes soa como uma estranha espécie de fraseado barroco, mas ao mesmo tempo bem britânico.
A chave para isso o leitor só vai descobrir quase no final da leitura: é que o texto que lemos é, na verdade, o livro escrito na maturidade pela adolescente que fez do desejo um instrumento de incriminação. E as aspirações literárias de Briony – esse é o nome da personagem – são marcadas pelas debilidades do escritor que idealiza a si e ao seu objeto de trabalho. Isso explica o floreio da prosa e, ao mesmo tempo, faz de “Reparação” o tipo do livro que dá ao leitor, encerrada a última página, um ímpeto de voltar à primeira e ler tudo de novo, sob a perspectiva de algo que somente no final tornou um elemento revelador.
Os críticos, naturalmente, adoram esse recurso, porque confere ao romance o que eles chamam de “dobra metalingüística” – aquele instrumento que faz da narrativa uma investigação tanto sobre o dilema humano explorado pelas situações quanto um estudo sobre o próprio uso da literatura como elemento de análise desse mesmo dilema. Vocês sabem: o livro que na verdade é outro livro, o avesso do avesso, o espelho infinito da modernista reflexão literária.
Jô, somente tempos depois de terminar a leitura foi que encontrei o envelope com o texto do crítico e as suas considerações. Por isso nunca formulei a resposta que você na realidade esperava – algo assim, por escrito, pingos nos is. Então a resposta fica sendo esta e fica servindo pra você para os demais leitores deste Sopão: o livro tem sua tensão, mas é realmente uma narrativa às vezes difícil de atravessar, tanto devido ao tempo próprio que utiliza quanto por causa dos muros de trepadeiras e fontes quase vitorianas com que se reveste.
Uma última observação, antes de encerrar o post. Voltei ao assunto “Reparação” porque acabo de ver nos portais da internet que o livro virou filme. E veja só: pelo que mostra o trailer, parece ter rendido um filmão, do tipo espetaculoso, valendo-se tanto daquela tensão psicológica e intimista que permeia o livro quanto da parte dele que se passa na retirada dos britânicos de uma frente de batalha na Segunda Guerra Mundial.
A pergunta é: Jô, e agora, será que a gente vai gostar do filme e, gostando, seremos tentados a reler “Reparação” na desconfiança de que nossa primeira leitura terá sido equivocada?
P.S. 1: Por hora, enquanto o filme não chega aos cinemas, me conformo com Philippe Roth, aquela da “Pastoral Americana”, de quem gosto, a quem admiro e em torno do qual não tenho nenhum conflito com os críticos, nem mesmo os mais especializados.
P.S. 2: O trailer da adaptação de “Reparação” para o cinema está em exibição no portal G1.
Agora vocês vejam a minha situação: junto com o livro, Jô me entregou também um envelope pardo, fechado, dentro do qual havia dois textos: um era uma resenha do livro publicada no finado site Nomínimo; o outro era uma espécie de carta da prória Jô, explicando pra mim por que não havia tolerado o livro e confrontando a palavra do crítico do Nomínimo com as impressões dela própria. Mas quando recebi o envelope, não sabia do seu conteúdo, porque Jô, além de tudo, advertiu-me: eu só deveria abrir o envelope quando tivesse acabado de ler o livro.
Duvido que algum de vocês já tenha sido incumbido de semelhante tarefa. Se foi, deve imaginar como eu me sentia diante disso tudo: e agora? Se eu gostar do livro e confirmar a impressão dos críticos, Jô vai no mínimo me riscar da lista dos amigos dela; e se, ao contrário, eu também ficar desapontado com um livro tão elogiado, então deve haver alguma coisa errada com os críticos mais afiados, os escritores mais celebrados – e eu e Jô é que somos dois incompreendidos.
Comecei a ler “Reparação” e, para ser coerente com o espaço de uma postagem de blog, resumo minha impressão: o livro tem uma grande tensão interna ao contar como uma adolescente sublima uma atração sexual pelo namorado da irmã mais velha fazendo uma acusação grave – a de que o rapaz, por sinal o filho de um serviçal da família, estuprou a prima de ambas. A denúncia e seus desdobramentos – e o título do livro se refere ao esforço inútil de anular seus efeitos – se dá a partir de 1935. E o problema – acho que foi isso o que irritou Jô – é que a narração, além de demorada pela necessidade de explorar as sutilezas dos sentimentos da adolescente, de sua irmã e do pobre rapaz sob acusação, tem um floreado esquisito, que às vezes soa como uma estranha espécie de fraseado barroco, mas ao mesmo tempo bem britânico.
A chave para isso o leitor só vai descobrir quase no final da leitura: é que o texto que lemos é, na verdade, o livro escrito na maturidade pela adolescente que fez do desejo um instrumento de incriminação. E as aspirações literárias de Briony – esse é o nome da personagem – são marcadas pelas debilidades do escritor que idealiza a si e ao seu objeto de trabalho. Isso explica o floreio da prosa e, ao mesmo tempo, faz de “Reparação” o tipo do livro que dá ao leitor, encerrada a última página, um ímpeto de voltar à primeira e ler tudo de novo, sob a perspectiva de algo que somente no final tornou um elemento revelador.
Os críticos, naturalmente, adoram esse recurso, porque confere ao romance o que eles chamam de “dobra metalingüística” – aquele instrumento que faz da narrativa uma investigação tanto sobre o dilema humano explorado pelas situações quanto um estudo sobre o próprio uso da literatura como elemento de análise desse mesmo dilema. Vocês sabem: o livro que na verdade é outro livro, o avesso do avesso, o espelho infinito da modernista reflexão literária.
Jô, somente tempos depois de terminar a leitura foi que encontrei o envelope com o texto do crítico e as suas considerações. Por isso nunca formulei a resposta que você na realidade esperava – algo assim, por escrito, pingos nos is. Então a resposta fica sendo esta e fica servindo pra você para os demais leitores deste Sopão: o livro tem sua tensão, mas é realmente uma narrativa às vezes difícil de atravessar, tanto devido ao tempo próprio que utiliza quanto por causa dos muros de trepadeiras e fontes quase vitorianas com que se reveste.
Uma última observação, antes de encerrar o post. Voltei ao assunto “Reparação” porque acabo de ver nos portais da internet que o livro virou filme. E veja só: pelo que mostra o trailer, parece ter rendido um filmão, do tipo espetaculoso, valendo-se tanto daquela tensão psicológica e intimista que permeia o livro quanto da parte dele que se passa na retirada dos britânicos de uma frente de batalha na Segunda Guerra Mundial.
A pergunta é: Jô, e agora, será que a gente vai gostar do filme e, gostando, seremos tentados a reler “Reparação” na desconfiança de que nossa primeira leitura terá sido equivocada?
P.S. 1: Por hora, enquanto o filme não chega aos cinemas, me conformo com Philippe Roth, aquela da “Pastoral Americana”, de quem gosto, a quem admiro e em torno do qual não tenho nenhum conflito com os críticos, nem mesmo os mais especializados.
P.S. 2: O trailer da adaptação de “Reparação” para o cinema está em exibição no portal G1.
3 comentários:
li, do mesmo autor, faz pouco tempo, "na praia", e gostei. não adorei, mas gostei. e fiquei com vontade de ler esse aí também...
p.s.: e também de ver o filme...
E vc acha que vou ver esse filme? Talvez qdo passar na TV e eu estiver de bobeira. Sobre esse "na praia" li um trecho sobre um beijo, no mesmo nominimo antes de ele acabar, que é uma das coisas mais grotescas que já vi. mesmo considerando a tal da "dobra lingüística", o livro é mesmo um porre.
Postar um comentário