Assistindo ao filme "Santiago", o metalinguístico documentário de João Moreira Salles, lembrei da figura de dona Letícia. Explico: Santiago, o personagem que dá nome ao documentário e lhe preenche praticamente todas as cenas, é o ex-mordomo da casa do pai de João Salles - um homem que foi banqueiro, embaixador, ministro, figura notória do Brasil de seu tempo. O filme, como vocês já devem ter lido, é uma estrada de mão dupla: de um lado, examina a figura incomum de Santiago; de outro, questiona o interesse do próprio cineasta em realizar o documentário - e a forma como conduziu as filmagens há coisa de dez anos.
Ante de chegar a dona Letícia, preciso gastar mais algumas linhas falando da relação entre Santiago, João Salles e a casa onde o cineasta morou até os vinte anos, com os pais, os irmãos e o então mordomo. Repito que é coisa que vocês certamente já leram nos jornais e revistas, mas preciso recuperar antes de fazer um corte da casa modernista da Gávea onde viveram os Salles para um quartinho de uma casa de cômodos no centro de Natal, onde encontrei dona Letícia. Então: o cineasta João, autor de excelentes documentários ("Notícias de uma guerra particular", "Entreatos" e o roteiro de uma bela série televisiva exibida nos anos 80 pela Manchete, "América", dirigida pelo irmão Walter Salles), começou a rodar o que seria "Santiago" em 1998. Mas não conseguiu dar ao material filmado uma montagem expressiva - ou que lhe satisfizesse a necessidade artística embutida no projeto do documentário. Agora, reviu os takes gravados e retomou a proposta, mas, com a maturidade que o tempo confere até ao mais intempestivo dos artistas, reavaliou tudo e descobriu que foi dele mesmo - e de sua ansiedade juvenil - a culpa pelo fato de o filme ter ficado inconcluso.
Neste exercício, o documentarista construiu um filme que serve o tempo todo como matéria de questionamento sobre o valor da verdade e da espontaneidade em contraposição à expressividade formal que preside o suposto cinema autoral, especialmente no terreno do documentário. É uma profunda e tocante aula sobre a maneira como nos relacionamos com a emoção filmada - e a forma como o cineasta burila, anulando ou potencializando, essa mesma emoção. Numa sentença: João Salles forçava a barra e, agindo assim, não apenas falsificava como escondia a verdadeira aura de seu personagem.
É preciso lembrar que Santiago se prestava bem a tal exercício: é o tipo de pessoa que parece mais um produto de ficção, tal a variedade de facetas que oferece ao seu documentarista. Argentino, é um serviçal deslumbrado com o estilo de vida das famílias aristocráticas. Uma vez dispensado de seu trabalho na mansão dos Salles, gasta seus últimos dias enfurnado num apartamento habitado por pilhas de anotações sobre tais famílias e outras figuras públicas feitas por ele ao longo dos anos. É pouco? Pois ele também adora dançar usando as mãos ou empunhando castanholas.
Dona Letícia Galvão também vivia dos restos de lembranças de outras eras, quase vitorianas de tão remotas quando a conheci, em algum ponto dos anos 80. Aluguei um apartamento no Parque das Pedras, ali em frente ao bairro de Neópolis, em Natal, cujo dono era o único neto de dona Letícia - um médico que residia em Brasília. Você entendeu certo: o dinheiro do aluguel era praticamente a única renda que tinha dona Letícia. E eu, todo fim de mês, ia até a casa de cômodos em que ela morava, ali perto do Ginásio de Esportes, pagar o aluguel. Dona Letícia ocupava dois quartinhos conjugados no que um dia havia sido o quintal da casa de cômodos. Era dois quartos escuros e entulhados de móveis velhos, vasinhos de plantas, muito papel, embalagens de margarina e porcelanas manchadas. Para usar uma imagem que dê conta da descrição sem se ater aos detalhes dela, posso dizer que a moradia de dona Letícia parecia mais um soturno depósito de pequenos bibelôs quebrados e colados com grude caseiro. E ela, uma quase delirante zeladora de seu antiquário pessoal.
A cada visita, logo descobri, teria que fazer mais do que pagar o aluguel que lhe garantia a sobrevivência. Letícia Galvão não queria só dinheiro: como tantos idosos que terminam sozinhos, queria ser ouvida. Tinha memórias e mais memórias para narrar. Queria lamentar o fato de não ter mais vinte anos. Desejava compartilhar de qualquer maneira seus dramas pessoais, como o fato de ter perdido cedo o marido e o único filho - este, salvo engano, morto por atropelamento no Recife. Restou-lhe o neto, o mesmo que morava em Brasília (hoje sei que trabalha no hospital público de Sobradinho) e deixava para ela o parco dinheiro do aluguel do apartamento onde eu morava.
Do que mais Letícia Galvão sentia falta era do que chamava de literatura. Ela escrevia à mão romances de moças em pequenos cadernos escolares. A protagonista de um deles se chamava Suerda. E as capas ela mesma se encarregava de produzir, usando colagens, letras desenhadas e recortes. Enquanto escrevia, lembrava dos saraus de poesia que eram realizados na casa dos seus pais na distante juventude. Ansiava por voltar a fazer parte de alguma coisa parecida com tudo aquilo. Sabendo que eu era jornalista, agarrou-se à minha visita mensal para, de alguma maneira, dar vazão a isso. Blogue não é lugar para narrativas tão longas quanto esta está se tornando. Para encerrar, direi que dona Letícia Galvão, essa Santiago de vestido que, tanto quanto o ex-mordomo, lutava em vão para fazer o tempo parar (ou, quiçá, retroagir), tornou-se objeto de uma reportagem que escrevi para a Tribuna do Norte. Título da matéria: "A última beletrista". Depois, essa matéria deu origem a uma outra, produzida e veiculada pela TV Cabugi - um pequeno curta jornalístico feito com competência e sensibilidade pela repórter Lúcia Matias e editado com a categoria de sempre por Adriano de Sousa.
Ao contrário de João Sales diante de Santiago, eu tinha uma paciência infinita para ouvir dona Letícia. Talvez por não ter a ansiedade formal do cineasta que encontra um personagem e quer fazer dele objeto de seu exercício artístico. Talvez por não ter o poder que João Sales tinha na circunstância dele (de filho do ex-patrão, com a superioridade natural do cineasta). Minha relação com dona Letícia era mais do tipo de igual para igual. Um dia, ainda trabalhando na TV Cabugi mas já morando em outro apartamento, abri casualmente uma edição do Diário de Natal e quase tombei de susto. Ali estava, natural como a passagem do tempo, um anúncio de uma missa de sétimo dia, em memória à alma de Letícia Galvão.
Vá ao cinema ou espere a chegada de "Santiago" em DVD e experimente o amargo sabor do legado de Letícia e Santiago: ao contrário do que se pensa, cedo ou tarde o tangível se tornará memória. Para saber viver, é preciso contar com isso. Como diz a ululante letra da canção mais que popular: "e tudo passa, tudo passa".
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