quinta-feira, 18 de outubro de 2007

A Tropa e a Cidade


Na época em que “Cidade de Deus” chegou aos cinemas, arrebanhando multidões de espectadores e dominando – como ocorre hoje com “Tropa de elite” – o noticiário cultural e social do país, logo foi objeto de uma segunda leitura, feita por parcela dos cineastas e críticos brasileiros. A crítica era de que o sucesso do filme se devia a um desonesto aproveitamento das imagens da miséria brasileira como ingrediente de um cinemão feito nos moldes da estética do arrasa-quarteirão norte-americano, num oportunismo de videoclipe que pouco tinha a ver com a verdadeira essência do cinema.

Na época, fui assistir, com grande expectativa, a “Cidade de Deus”, embalado tanto pelo êxito popular do filme, quanto pelas críticas que lhe eram favoráveis e também estimulado pelas que lhe eram furiosamente contrárias (só para lembrar, uma das ressalvas mais veementes vinha da cineasta Suzana Amaral, diretora do primoroso “A hora da estrela”).

Nas últimas semanas, aconteceu comigo – e certamente com muitos dos leitores desse Sopão – um fenômeno semelhante. Estou falando, claro, da “Tropa de elite” do capitão Nascimento. Primeiro foi o fenômeno da pirataria do filme, um processo sociológico (ou mercadológico, quem irá saber?) à parte – mas não queria entrar nesse aspecto aqui. Depois, com o filme oficial nos cinemas, veio o “debate” nacional sobre a validade ou não do enfrentamento do tráfico nos morros cariocas segundo o evangelho heterodoxo do Batalhão de Operações Especiais. Nesse “debate”, ganhou força uma tese sempre assobiada mas nunca gritada de tal maneira como no filme – a de que o grande responsável pela violência do tráfico é o usuário de drogas. Os mesmos usuários que, nos anos 80, eram considerados párias, e no período seguinte, com um pouco de bom senso e informação de natureza médica, sem falar no auxílio de filmes como “Bicho de sete cabeças” (Laís Bodansky), para ficar em outro exemplo cinematográfico, perderam um pouco do estigma e passaram a ser vistos de maneira menos preconcebida pela sociedade. E finalmente, veio o famigerado caso do assalto ao mauricinho-mor, um quase factóide que, como tantos, a imprensa tratou de inflar até o limite da irresponsabilidade, como ademais tem sido seu hábito há mais de um par de anos. Vocês sabem: rollex roubado, o cidadão cogitou de chamar seu herói, o Capitão Nascimento.

O resultado de tudo isso foi um tremendo empurrão na bilheteria do filme, do tipo de movimento coletivo que praticamente obriga todo mundo a assisti-lo, quando menos para ter uma opinião sobre ele – ou para apenas confirmar casualmente o que foi lido aqui ou ali, e a fartura confusa de textos sobre o filme foi um outro fenômeno à parte dentro do fenômeno maior. Fartura que esse blogue desconhecido evidentemente está a alimentar, reconheço.

De maneira que me encontrava assim, confuso, antes de assistir ao filme, o que fiz esta tarde. Tenho de dizer que o caráter meio viciado do “debate” nos jornais e revistas (na internet, como tem acontecido sempre, a discussão adquire uma qualidade maior, embora com certos pronunciamentos pessoais e pontuais assustadores) teve sobre mim um efeito diferente daquele suscitado pelo falatório que precedeu “Cidade de Deus”. Na época, eu queria muito assistir ao “Cidade” – quanto mais se falava dele mais aumentava minha curiosidade. Agora, quando mais foi sendo ampliado o “debate” sobre o “Tropa”, mais meu interesse caía.

Porque eu fui percebendo que havia duas coisas distintas: o filme e a repercussão dele, ainda que o primeiro se preste ao triste papel que vem sendo sustentado pela segunda. Os conservadores deste imenso país estão usando descaradamente o “Tropa de elite” como discurso para legitimar uma política de segurança reducionista, do tipo bandido versus mocinho, numa abordagem no mínimo desonesta, que desconhece propositadamente a realidade histórica passada e presente que gerou a violência do tráfico. Tentam, tanto quanto possível, usar o filme como retrato do Brasil atual do governo dos permissivos petistas mensaleiros. Usam a popularidade que o filme alcançou – inclusive com o fenômeno da procura pela cópia pirata – como atestado de que esse “estado de coisas” aflige a todos e não apenas a tal elite bem-pensante que é a verdadeira consciência brasileira, segundo prega o evangelho da revista Veja.

Enfim, capitulei e fui ao cinema. Entrei na sala ainda com uma leve impressão de que seria atingido pelo mesmo efeito que se deu na época de “Cidade de Deus”. Só precisei de uns poucos quinze minutos para me impressionar com a verdade do filme de Fernando Meirelles. Logo notei que os recursos formais usados pelo cineasta vindo da publicidade eram mais do que legítimos – eram um instrumento de expressividade. Nunca esqueci da cena em que o garoto mal saído das fraldas toma um tiro no pé disparado por outro garoto. “Cidade de Deus” não tinha violência gratuita – tinha a força de imagens que expressavam assombrosamente a pressão sob a qual vivia uma comunidade inteira. E, no caso de “Tropa de elite”, havia uma recomendação a mais: vi e gostei muito do documentário “Ônibus 174”, que o diretor José Padilha tem no currículo.

Pois não foi nada disso que aconteceu quando me vi diante dos primeiros vinte minutos de “Tropa de elite”: percebi que o filme de Padilha, além de não ter um milésimo da força expressiva de “Cidade de Deus” (e de apenas copiar seus recursos estilísticos, como uma versão pirada do seu antecessor), apaga deliberadamente dados da realidade que gerou seu principal cenário, o morro carioca dominado pelo tráfico, e manipula informações fazendo dos dirigentes de uma organização não governamental um bando de traficantes disfarçados. O filme faz pilhéria do conhecimento ao ridicularizar simploriamente uma aula de universidade. Eu não tenho simpatia especial nenhuma pela juventude dourada e privilegiada de Ipanema (espelho, há muito tempo, da de outras capitais), mas também não simpatizo nem um pouco com essa visão rasteira que o filme apresenta dela. “Tropa de elite” criminaliza os usuários de drogas a um ponto nunca visto antes (pode até ter razão parcialmente, mas da maneira como o faz, é quase como sugerir que a polícia mate logo os usuários otários no lugar de se arriscar diante dos traficantes armados).

Bang-bang

Para o público em geral, o que fica é um enfrentamento mal circunstancializado entre policiais do Bope e chefes do tráfico. Então é como se o público comum, do tipo que pouco se aprofunda na linguagem do cinema e quer mais é se divertir, estivesse assistindo a um bang-bang moderno, ambientado no país (e na realidade) que ele conhece, com a cor local que dá um outro gosto ao espetáculo – e sem maiores firulas que o obriguem a quebrar a cabeça pra entender o que se passa na tela.

Até porque durante o filme inteirinho temos a narração em off do Capitão Nascimento – um tipo entre o boçal e o intransigente, que traduz uma a uma as situações em exibição, comentando cada lance, cada personagem, cada inflexão do roteiro, cada ponto de ruptura que transforma policiais que se professam honestos em monstros violentos. Alguém já disse nos textos que li sobre o filme na internet que há dois níveis de leitura na tela: uma coisa é o que o capitão diz, outra é o que as imagens e os sons mostram, muitas vezes contrariando o narrador onipresente. Pode ser, mas o fato de a narração permear o filme todo – eu disse, todo – faz da leitura dele, do personagem, uma ditadura verbal que direciona tudo, valoriza tudo, legitima cada visão (estritamente) policial sobre o problema da violência carioca. E eu duvido que o público geral, especialmente esse ansioso que viu o filme nas cópias piratas, esteja atento para esse tipo de sutileza. Se ela existe, é mais para servir como desculpa do diretor na hora de justificar o resultado de seu trabalho. Aliás, numa manobra similar à ambiguidade contida na violência dolby em mil canais, que tanto reproduz um dado da realidade dentro da sala de exibição, na sinfonia sinistra dos tiroteios, quanto funciona como agrado e atrativo para o público.

Você há de dizer: mas “Cidade de Deus” também usava tais recursos. É verdade, mas Fernando Meirelles não negou ao público a circunstância que gerou monstros como Zé Pequeno. A gênese daquela comunidade, da segregação inicial aos primeiros assaltos “inocentes”, passando depois ao mundo da droga pesada e das armas, estava tudo lá. O entretenimento espetacular que também é um característica marcante e definitiva para o sucesso do filme não nos roubou nada disso. Também é verdade que "Tropa de elite" mostra como funciona a máquina da corrupção policial no próprio Bope, num exercício de investigação sociológica semidocumental. Mas parece fazer isso apenas para legitimar seu discurso frio e distanciado quando estiver atacando a leniência da classe média consumidora do produto dos morros.

Feitas as contas, ao final do filme não restava mais nada do que eu havia lido, fosse contra ou a favor. Não havia a revolta que muitos dizem sentir ao final da exibição. Não havia o horror nem o torpor, muito menos a catarse que por um momento tomou o lugar do cinismo no coração de Arnaldo Jabor. Como não houve muita expectativa favorável, também não havia propriamente decepção. Sabe o que havia? Uma estranha espécie de tristeza, pela desonestidade intelectual contida no filme e ampliada com a sua repercussão. Me senti enganado, manipulado, um bonequinho como aquele da crítica do jornal O Globo nas mãos do cineasta. Senti que o filme, como as drogas que critica, faz mais mal do que bem. Tire as drogas do morro – por exemplo, como muitos defendem, legalizando tudo – e outra mercadoria vai surgir, porque o histórico de exclusão é de séculos e não se resolve de um dia para o outro. “O sistema” – aquele chavão explicativo a que o capitão Nascimento tanto recorre – vai encontrar um substituto. Por isso o filme não atinge seu alvo: o que faz é se aproveitar de um momento de estupefação nacional diante do drama carioca.

P.S: Eles não vão saber, mas pouco importa: queria dedicar essa postagem a Arnaldo Antunes, Lobão, Rita Lee e Gilberto Gil. Acho que não preciso explicar os motivos (se você for um leitor de menos de trinta anos, pergunte aos seus pais, o que pode render, aí sim, uma discussão honesta sobre drogas, tráfico, violência e in-tolerância).

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