quinta-feira, 10 de março de 2011

Crônicas em 3D


Recuerdos de uma tradição: houve um Brasil esquecido em que, junto com a inflação nas alturas, o rock nacional começando a comer pelas beiradas, o filme anual dos Trapalhões e o disco natalino de Roberto Carlos começando a tocar no rádio trazia também, todo final de ano, o livro obrigatório de crônicas de Fernando Sabino. Hoje você passa os dedos na sessão de autores nacionais de um sebo ou biblioteca qualquer e nem se dá conta do quanto aquela seleção de amenidades delicadamente costuradas pela máquina de escrever de Sabino fazia parte do inconsciente nacional (pelo menos da parte da população que tinha acesso a este tipo de coisa; o que, está muito mais claro hoje, não era, proporcionalmente, muito).

Ler agora, pela primeira vez, um daqueles livros – sempre a título de curiosidade que é o norte perdido deste leitor errante – é ter a sensação da releitura. Porque de tão para trás (e não é nem o caso de usar o termo “clássico”, pois não é disso que se trata), a leitura de “O gato sou eu”, lançamento de Sabino do saudoso ano de 1983, soa como saudade forte de alguma coisa que, de fato, não se viveu.
Firma-se a constatação: o quanto inocente era nossa literatura de consumo em meados dos anos 80. Histórias singelas, causos semibanais, registros até pequenos diante do conjunto da obra de um sujeito que escreveu aquela dor em forma de livro que é, ao que eu me lembre, “O encontro marcado” (este sim, candidato a uma estomacal releitura). Ler, como quem relê, “O gato sou eu” é como assistir a um velho filme brasileiro na programação vespertina do Canal Brasil: mais do que uma peça literária, um registro documental do que foi este vasto país há apenas umas décadas atrás.

E veja o quanto éramos, entre preços em alta, ditadura em crise e greves a pipocar, leitores delicados. Em “O gato sou eu”, tudo é superficial o bastante para não incomodar a epiderme de qualquer leitura mais susceptível. Como se fossem contos escritos em papel de pão com hidrocor de pouca tinta. Ou aquele bolinho de padaria que você tem de comer no mesmo dia senão estraga e perde o sabor. Ou aquela marca de bala soft que saiu de linha.

E ainda há, como se fora aquela bala, uma especulação futurística que ironicamente se desmentiu e se confirmou. Está lá, no conto “O mundo é pequeno”, página 189, quando Sabino narra o segundo encontro que teve com o ator Broderick Crawford, dos filmes “A grande ilusão” e “Os trapaceiros”. O primeiro encontro foi no Rio de Janeiro em 1953, o segundo em Hollywood em 1972.

Conta o escritor: “Depois iniciamos uma discussão sobre o futuro do cinema (observação minha: lembre-se, era 1953, a evocação é do primeiro encontro). O ator afirmou que todos os filmes, dentro de dez anos, seriam em três dimensões. Estava em moda na época não apenas o sistema 3D, mas o Panavision, o Vistavision, o Cinerama, a tela panorâmica e outras novidades. Eu sustentava que não, usando argumentos de bêbado em favor do advento do cinema em casa. Em televisão, propriamente, ninguém falou. Ele fez questão de apostar solenemente um dólar.”
Lido hoje, esse trecho de “O gato sou eu” mostra que ambos acertaram a aposta, cada qual à sua maneira. Em 1983, ano de lançamento do livro, Fernando estava com mais chances do que o ator – embora, àquela época, viodeocassete ainda fosse luxo de quem morava na Vieira Souto. Mas, na perspectiva de 2011, chega a ser irônico o diálogo entre Fernando Sabino e Broderick Crawford: uma antevisão dupla, feita em meio à lombra de um porre não explicitado na crônica, mas crônico nas entrelinhas. Para se ver como a perspectiva do tempo pode mudar a panorâmica da vida.

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