quinta-feira, 10 de março de 2011

Woerdenbag


O menino de 50 anos João Luís é, definitivamente, nosso maldito de estimação. Nosso rebelde de predileção. O enfant terrible do tempo em que era moda usar e abusar dessa expressão. É também, como é salutar e recorrente entre os artistas, um bicho humano a se reinventar de tempos em tempos. Do rock-baladeiro autor da irresistível “Me chama” a inimigo público número um da imprensa, de porta-estandarte gargalhante da cultura das drogas a realizador da mistura rock-samba que dava pruridos em ouvidos metaleiros de butique, de contestador da pirataria oficial da indústria do disco e líder do movimento compre a revista e leve o CD (numerado) ao posto de reflexivo quase senhor ciente e cioso de sua biografia tortamente reta.

É este último o papel que ele vem desempenhando precisamente agora, escudado na autobiografia “50 anos a mil”, escrita com a colaboração de Cláudio Tognolli. E como nos tempos de “Canos silensiosos”, “Corações psicodélicos”, “Revanche” e “Vida bandida”, eis que Lobão, esse nosso eterno maldito preferido, está de novo na parada de sucessos. Em outra mídia, como tem feito, afinal, tantos outros do mesmo meio (Arnaldo Jabor convertido em raivoso analisa político e comportamental; agora Caetano Veloso com um pé no mais do que cômodo e antidiplomático jornalismo de opinião todo domingo no “Globo”, o titã Toni Belloto com seus romances pós-qualquer coisa etc etc). Lobão pode até não estar sendo original, de vez que seu livro chega quase que na sucessão de outros êxitos auto ou só biográficos recentes, como o Tim Maia reconstruído por Nelson Motta e o Erasmo Carlos contado por ele mesmo. Foram livros que deram certo, porque traziam relatos de gente com muita história interessante – e sobretudo divertida – de bastidores do mundo do show, do disco e da música para contar. Mas nenhum deles chega aos pés da atribulada vida do Lobo em questão.

Lobão foi, durante um bom tempo, nosso Cristo pop, antimessias ideal para denunciar a hipocrisia do tal do sistema (musical, discográfico, político, comportamental, ideológico). Sujo sem fazer questão de lavar as mãos e banhar o corpo, envergava na sua pessoa os vícios e as inconseqüências mais condenáveis para a época – também para hoje, mas a mudança de eixo temporal altera um pouco o resultado da soma – de maneira que não havia espaço para lhe desestabilizar a imagem mais do que ela própria já estava chamuscada. A galera da onze que o diga. Dito de outra maneira: não é que Lobão fosse o Cristo da perfeição a apontar o indicador para os furos da lona do circo brasileiro de então; ele era, antes, um rombo naquela mesma lona a dizer como costurar aquela, com o perdão do palavrão que nunca poderia ser tão apropriado quanto aqui, porra toda. A legitimidade de Lobão não vinha de qualquer forma de correção política e pessoal. Vinha justamente de sua condição de pária – situação na qual se viu por imposição de quem mandava na indústria musical da época mas também de sua teimosia em enfrentar, de forma quase suicida, esse mesmo poder.


Noves fora, temos no livro o relato da cisma besta com Herbert Vianna (é como é dito no filme “A rede social”: as coisas, numa determinada geração, estão no ar; cada um pega uma parte ou aproveita um pedaço da parte vista pelo outro e faz sua recriação), os não sei quantos suicídios incompetentemente tentados e até, para efeito de comparação, enxertos de notícias da imprensa da época que, lidos em comparação com o relato do autor, mostram a que ponto a informação publicada nos jornais e revista (não) merece crédito e confiança.

E das quase 600 páginas do livro se sai – pelo menos eu saí, e olhe que não me animei a comprar o exemplar na livraria, mas acabei lendo porque um amigo me entregou o tijolão em mãos como quem faz uma intimação com rima e tudo – com ainda mais simpatia pelo tal João Luiz. Ciente de que há muito de marquetagem no livro, seu lançamento, sua evidente qualidade de relançador do artista no palco do mundo pop brasileiro. Mas é o tipo do relato que reequipa seu personagem já gasto com nova carga de pequenas e grandes traquinagens que dão brilho renovado ao ser humano ali contido. Como fez “Roberto Carlos em detalhes”, o livro banido do rei inseguro.
Você deixa a leitura com muito mais simpatia pela pessoa em questão do que quanto nela ingressou. De “50 anos a mil” resulta um Lobão anos luz além da pecha fácil de maldito que a gente usa, claro, só pra adiantar o papo para o leitor igualmente viciado em facilidades. Mas não se enganem, que da doce lama desse livro emerge um Lobão mais inclassificável, persona múltipla mas em muitos momentos autêntica – o que talvez explique a empatia que ele estabelece de cara mesmo com o mais enfarado dos conservadores retardatários.

Um comentário:

ana sua mana disse...

li o livro, ganhei de natal do meu irmão. gostei mais do começo, quando ele contou sobre a infância/adolescência e a família (com uma família daquelas, ele não podia ser "normalzinho", concorda?). mas acho que faltou uma ediçãozinha básica, tem uns trechos dispensáveis, detalhes demais.