quinta-feira, 17 de março de 2011

Feito para lembrar


Recomendado por dez entre dez ansiosos candidatos a pioneiros do bom gosto, ainda que seja o gosto médio, é o CD de estréia do músico, compositor e agora também cantor Marcelo Jeneci, “Feito para acabar”. Um disco certamente superestimado, embora seja agradável como afinal de contas se propõe – e se o incensam além de seu alcance não deve ser somente culpa dele. O disco está sendo vendido nas mais sofisticadas publicações que mais dia menos dia estarão embalando peixe como o mais vulgar dos jornais de província como o petardo pop convencional de um cara que não se furta a fazer música inteligente embora ligeira. E com influências que vão da velha Jovem Guarda até uma coisa meio Arnaldo Antunes.

Então a gente pega o disco na loja, leva pra casa e de cara, logo na faixa de abertura, vem uma batidinha eletronizada que lembra aquele antigo teletema, um clássico menor do cancioneiro de novela dos anos 70. E a voz que se ouve, além de um Marcio Greyck meio cool, que é como soa à primeira vista o cantor Jeneci, é a de sua partner meio Evinha (o Google e o YouTube podem ajudar os mais jovens a saber quem são esse Márcio e essa Evinha). O tecladinho segue marcando bem direirinho o ritminho da canção e só faltam mesmo as palmas do auditório. Mas é tudo muito cantarolável e enganoso, porque, como se verá adiante, tem coisa melhor por baixo desse creme de galinha de festa de fim de ano em família.

Marcelo Jeneci, o cara que foi do acordeão às bandas de estrelas da MPB e descambou neste seu primeiro CD tão festejado realiza no disco sínteses tão improváveis quanto efetivas – se ninguém fez antes é porque o preconceito auditivo falou mais alto. E isso ele tem a favor dele: a coragem de, embora soando às vezes meio distanciado como uma performance do Los Hermanos, não esconder ou até explicitar que deseja ser ouvido com a avidez fiel que os fãs de Odair José um dia devotaram ao autor da música da pílula. E o CD “Feito pra acabar” realiza isso em faixas e mais faixas que lembram casamentos inesperados. Há músicas em que temos a nítida sensação de estar ouvindo um dueto de Jorge Ben Jor com Padre Zezinho. Outras que dão a impressão de ser a trilha sonora de um caso secreto entre a bossa nova e aquele gênero de música para lual que deu fama ao sulista Armandinho. É Rumo com Roupa Nova, Titãs com Leonardo (ele mesmo, que gravou, em formatão mainstream, a mesma “Longe” incluída aqui no CD), Lulu Santos com vanguarda paulista. Raul Seixas com Chico Cesar.


Mas o filé – inesperado filé pela qualidade potente da composição e pelo painel vasto traçado no espaço exíguo de uma canção popular, como só em felizes ocasiões acontece – está na faixa “Por que nós?”, composta por Jeneci em parceria com Luiz Tatit (eu disse que o perfil das parcerias, reais e sugeridas pelo disco, é surpreendente). Com a leveza que caracteriza o conjunto, esta faixa isolada encara um assunto bem sério: o contraste entre o mundo que vivemos e fizemos durante um passado ainda recente, coisa dos anos 70 e 80, e a tecnotroglodítica vida consumocompetitiva que está em vigor hoje em dia. Sem saudosismo fácil, é uma bela olhada no retrovisor tentando divisar fronteiras que infelizmente foram atravessadas com uma pressa que a gente não precisava ter. E como dói. Segue boa parte da letra, que diz tudo e merece leitura atenta:

“Éramos célebres líricos / Éramos sãos / Lúcidos céticos / Cínicos não / Músicos práticos / Só de canção / Nada didáticos / Nem na intenção / Tímidos típicos / Sem solução / Davam-nos rótulos / Todos em vão / Éramos únicos / Na geração / Éramos nós dessa vez / Tínhamos dúvidas clássicas / Muita aflição / Críticas lógicas / Ácidas não / Pérolas ótimas / Cartas na mão / Eram recados / Pra toda a nação / Éramos súditos / Da rebelião / Símbolos plácidos / Cândidos não / Ídolos mínimos / Múltipla ação”


Links do Sopão:

Para ir direto ao original e ouvir Márcio Greyck de uma vez por todas no site oficial do cantor, clique aqui.
Para visitar ouvir "Por que nós?" e outras faixas do disco de Marcelo Jeneci, clique aqui.
Para vestígios perdidos da cantora Evinha, o atalho é aqui.

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