terça-feira, 30 de novembro de 2010

Complexos de verão


O do Alemão é apenas um. Nesta temporada de fim de ano também sofremos com os ataques de ansiedade preventiva de FHC e a síndrome dos três porquinhos renováveis a cada semana. Para escapar dessas febres, só ligando a tevê

Este 2010 que começou tão mal, com a calamidade em forma de toneladas de terra e lama desabando sobre o cenário tropical de Angra dos Reis, tinha mesmo que terminar com alguma coisa próxima ao que se possa chamar de boa notícia – embora, como sempre, um ou outro insatisfeito contumaz teime em negar a evidência que representa a retomada do tal Complexo do Alemão pelo poder público. Então é como se os deuses do calendário olhassem aqui para baixo e tivessem a decência de, na última horinha, mandar um benefício derradeiro para um período de doze meses tão marcado por tragédias, como também foram os terremotos do Haiti e do Chile. É uma espécie de compensação – mas, cá entre nós, que compensação, hein?

O tal Complexo do Alemão sempre teve aquela pompa toda, a começar pelo nome que, longe de sugerir algum mecanismo psicológico freudiano a condicionar o comportamento humano, designava mesmo era um conjunto de favelas onde o Estado com E maiúsculo há muito deixara de se fazer notar. Só que o peso do nome, ficamos sabendo nesse domingo, era muito menor do que sua empáfia sugeria. E se alguém lhe dissesse, em dezembro de 2009, que em dezembro de 2010 o tal Complexo do Alemão seria tomado por uma força tarefa policial em apenas vinte minutos de operação, você – e eu, e todo mundo – daria aquela risada de desdém. O fato de ter sido exatamente isso o que aconteceu no fim de semana passado – e, espera-se, seja mantido pelos próximos que virão até bem depois de 2014, pelo menos – é apenas um lembrete de outro deus, o da ironia saudável, de que o desdém nem sempre é a melhor reação diante do que quer que seja. Mesmo que fosse o tão temido Complexo do Alemão.

Um outro caso de desdém veio do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que por estes dias saiu de sua toca acadêmica de bom gosto e de bom tom para dizer que Dilma Roussef não pode governar no “piloto automático”. Pra ver que a mulher nem tomou posse ainda, anda atarefadíssima com os trabalhos da transição (tanto que esnobou até um convite de Obama para ir aos zéua), mas já merece críticas de FHC, aquele vulto bem conhecido dos brasileiros que viveram tanto o sucesso quanto o quase ocaso do Plano Real no final daquele segundo mandato. O homem podia segurar a vaidade ao menos até a mulher tomar posse a anunciar qualquer medida que seja – tornar obrigatória a adoção daquele penteado-tufão que ela usa entre as mulheres de sua faixa etária; ou criar o Ministério dos Três Porquinhos; ou qualquer coisa por aí – antes de abrir a boca para criticar o que quer que seja. Porque, convenhamos, crítica preventiva não pega muito bem. Se bem que o brasileiro em geral esteja tão acostumado a esses rompantes de FHC que nem liga mais.

Outra novidade atrasada que o SOPÃO deixou passar foram justamente os tais três porquinhos. Que não são mais os dois José Eduardo (o Dutra e o Cardozo) e Palocci, mas o trio Mantega-Miriam-Alexandre, guardiões da moeda, tributários das confianças dos mercados como quer a nossa mui brava grande imprensa. Gente que não assusta, não dá pesadelo, nada disso. Bom. Desenvolvimentistas sim, mas sem arroubos. Bom, tem uma galera aí que votou em Dilma, tirou a bunda da cadeira para vê-la eleita e está um dígito à frente nessa discussão, mas essa gente, felizmente, não conta para a mui brava grande imprensa. Mas a gente não pode fechar os olhos para eles e deixar de dizer que, mercado apascentado à parte, o desenvolvimentismo não ficaria mal se pressentisse a chegada do carnaval 2011 e saísse por aí pulando na rua de maneira a aumentar o bloco dos afortunados. Enfim, desenvolvimentismo sem medo de ter um arroubozinho ocasional. Se depender de Alexandre Tombini, tá meio difícil. Com aquela aparência de quem já nasceu com cara de futuro presidente do BC e cujas primeiras palavras não foram nem mamãe nem papai, mas “metas, metas”, ele não parece inspirar muita esperança nesse sentido. Mas se um dia a esperança venceu o medo e quatro anos depois também derrotou a mentira, tudo é possível.

O certo é que se tudo der errado na transição que se aproxima, confirmando não apenas as previsões mas também os desejos de certos analistas políticos da página 2 da Folha de S. Paulo, nós mortais sem espaço no jornal de âmbito nacional ainda teremos a televisão para nos distrair. Não, não estou me referindo à cobertura em tempo real da tomada da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão – olha ele de novo, com seu nome pomposo que levará tempo para adquirir a dimensão que de fato teve na batalha de domingo. E aproveito para dizer que, das muitas mitologias cultivadas pela esquerda apressada, essa de que a tevê – a Globo, bora logo dizer claramente – transformou em show o que seria um “problema social” é uma das menores. Todo o episódio do enfrentamento territorial contra o tráfico que vimos nos últimos dias é fenômeno da mais aguda natureza televisiva – e quem não vê isso, o que acontece inclusive com profissionais do meio, está apenas sendo voluntariamente cego. A Globo, em que pese todas as suas mumunhas pretéricas de campanhas eleitorais muitas, apenas viu o óbvio – e botou no ar, na hora.

Como ia dizendo antes do parênteses, sempre se pode correr para a televisão caso as coisas da transição saiam abaixo do esperado ou diferente da previsão. E até Eliane Cantanhede deve se divertir – pergunta importante: será que Eliane Cantannhede é capaz de dar umas risadas diante diante de uma televisão? – depois de um exaustivo dia de trabalho entrevistando oposicionistas e conspiradores em geral. Basta que a jornalista esqueça um pouco as artimanhas da política de Brasília e sente para assistir à nova aventura de Daniel Filho, esse produtor de tevê que sempre tem uma carta na manga quanto a gente pensa que ele aposentou a câmera. E até gente como Eliane Cantanhede pode se divertir com os episódios da série “As Cariocas”, embora seja uma personalidade da cena paulista. Porque ali há uma mistura de crônica safada carioca com áudio-visual conduzido com toque de mestre, um mix de literatura incidental no LCD com a pura e estonteante beleza dessas mulheres que parecem ter sido feitas para passar diante de uma câmera. Daniel Filho não vai ser o ministro da Cultura nem um dos próximos três porquinhos anunciados pela presidente Dilma, mas continua um potentado quanto o assunto é som, imagem, narrativa, clima, diversão e reflexão possível num meio naturalmente diluidor com é a televisão.

Ligue a tevê, que este ano a coisa esquentou antes mesmo do verão. Uma pressa bem-vinda, bem diversa daquela outra, praticada por um FHC cheio de desdém. Pensando bem, Complexo do Alemão talvez seja isso, essa ansiedade típica de ex-presidente falastrão, depois que ninguém mais lembrar que um dia esse foi o nome de um conjunto de favelas dominadas pelos traficantes no estado mais vibrante do Brasil.

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