terça-feira, 23 de novembro de 2010

Entrelinhas

Agora são águas passadas, mas não me sai da cabeça que na campanha eleitoral era assim: um negócio tão absorvente que não adiantava olhar para o lado, tentar se distrair com um livro, um filme. Eu bem que tentei, bem mais do que uma vez. Mas a campanha, fosse qual fosse a história na tela ou nas páginas do livro, dava um jeito de se intrometer por lá. Vamos ver se consigo lembrar, assim de passagem, os exemplos concretos, já que disso tudo me ficou muito mais a impressão geral dos efeitos do que a citação dos casos específicos.

E não convém reduzir o peso – não só o peso material mesmo daquelas mais de 700 páginas, embora elas tenham seu efeito nos braços que sustentam o livro – de A PEDRA DO REINO, o romance dos romances de Ariano Suassuna, a um mero caso específico como aquilo aqui em questão. A Pedra de Suassuna foi, sempre que aberta na vã tentativa de fugir dos embates ardentes da eleição, uma piada de gaiato sertanejo a tirar sarro do pobre leitor, como a lhe dizer: quer moleza vá no Balaio! Porque quem conhece o livro sabe que ele, além de ser o Dom Quixote armorial-brasileiro de Suassuna (e digo isso sem nem ter lido o farol Cervantes que ilumina essa e outras milhares de comparações), é também, num dos inúmeros veios narrativos, ensaísticos e literários praticados pelo autor ao longo de sua contra-epopéia molambenta de brasileiro desprovido de tradições consagradas, uma cutilada de faca peixeira nos padrões políticos que desde sempre fazem parte da vida nacional.

Na PEDRA, o anti-herói Quaderna tem por seus pares uma dupla atrapalhada composta por um intelectual pateta de extrema direita e um ativista caboclo quase em transe permanente em favor da extrema esquerda. O personagem central diverte-se como só mesmo o povo sabe se entreter diante dos embates entre essas duas faces da mesma moeda. Extrai dos seus conselheiros as contradições e as perplexidades, debocha de suas certezas, aproveita-se de seus furos para, gaiato como convém, afirmar-se. E assim, narra sua trama que é evidentemente muito maior do que esta postagem de dia útil. Só lendo, mas o que queria dizer aqui é que ler essa dita história como tentativa de fugir do debate eleitoral que tivemos é como fugir de uma chuvarada inesperada buscando abrigo num carro conversível de capota arriada. Ou por outra, trocar o chuvismo pela biqueira, o toró pelo banho de cuia.


Havia o DVD, essa bênção permanente contra o tédio. E lá vou eu à locadora em busca de velharias que têm sido o meu cardápio audiovisual customizado para momentos exasperantes nos vários setores da vida. O que eu levo, entre outros títulos que, por mais que tente, não consigo lembrar? Este RECONTAGEM, drama político feito pela HBO e que reconstitui a igualmente exasperante apuração (certamente fraudada) da eleição de Bush filho para a presidência dos EUA. Todo mundo lembra da história, embora não retenha os detalhes. Pois os detalhes estão todos lá, no filminho do canal de tevê a cabo. E nos detalhes é que a gente vê o tamanho do susto: foi só por meio de um deles que me dei conta da extensão do imbróglio dos filhos de Tio Sam. Precisamente aquele que conta, já bem a caminho do final do filme, que passaram-se umas tantas semanas sem que o povo americano – essa coisa pesada como o livro de Suassuna e que por isso mesmo também muito intimida os plebeus chamada “povo americano” – soubesse exatamente quem ganhara a eleição. Pronto, novamente o detalhe me escapa: teriam sido três meses? É demais, me diz o bom senso. Por aí, arrisca a memória. Só sei de fato que o período foi tão longo – tão mais longo do que ficou na nossa memória coletiva – que Al Gore, aquele que depois passou a tirar uma onda de ativista de responsa contra o aquecimento global, resolveu jogar a toalha antes que as instituições do seu país tivessem de fazê-lo, o que seria bem pior. Fico imaginado se fosse um tal de José Serra no lugar dele... pobres instituições!

E ainda houve uma felicíssima descoberta, o documentário MONDO VINO. Aquele que só na aparência, embalagem, primeira impressão trata dessa frescurite moderna que é o consumo socialmente correto do vinho, origens da bebida, teores de excelência e quejandos. Necas. O grande lance do filme é mostrar, por meio de vinícolas e vinicultores de várias extrações e pensamentos, como aquele outro negócio bem menos nobre chamado mercado global está pasteurizando bebidas outras e não só a preferida de Baco – assim como o mundo que as fabrica, vende, consome. MONDO VINO é como uma janela que se abre para mostrar como as ingerências do mundo empresarial e financeiro têm o poder de solapar frágeis mas belas filosofias mercantilistas que davam alguma humanidade ao ato de consumir o que quer que seja. O mais políticos dos filmes jamais feitos, disfarçado de doc bonitinho sobre líquido socialmente recomendado. Fico pensando na cara que deve fazer grande parte do público que aluga o petardo querendo uma coisa e encontrando o seu inverso.

Isso eu também teria, de outra forma e em filme diverso, numa cena de REDE DE INTRIGAS – o único dos aqui citados que foi visto (revisto) já fora do período de turbulências da campanha presidencial brasileira. Novamente, um caso em que o tema explícito do filme esconde para o espectador menos atento as questões de fundo que ele também tem a capacidade de atacar. Se no MONDO VINO, a exposição da cultura empresarial das vinícolas desnuda o que há de pior na globalização, em REDE DE INTRIGAS começamos acompanhando as artimanhas mil de uma rede de televisão americana para conseguir audiência mas desaguamos mesmo é no momento antecipatório em que o executivo da empresa diz ao apresentador em transe que não existe mais capitalismo, comunismo e as várias gradações entre os dois sistemas. O que existe, reza o engravatado, é IBM, ATT &T e outras siglas instaladas nos tronos que recebem alegremente as bundas dos novos deuses. Isso em 1974, quando o filme foi feito: bem antes do 1989 que redividiu o mundo trocando a régua concreta do muro da vergonha pelos esquadros virtuais bem menos exatos da nova era liberal e financeira.

E todo o resto – a ameaça, no ar, do apresentador de se suicidar ao vivo e a cores para todo o país, com a conseqüente decisão da executiva em ascensão de fazer dele um item indispensável de audiência garantida – é detalhe, de natureza bem diversa daqueles de que falei quanto ainda estava na conversa sobre o filme RECONTAGEM. Ao fim e ao cabo, tudo isso quer dizer que, no período da campanha, tudo se tornou tão urgente que nem os filmes nem os livros sobreviveram ao impacto de sua presença. Mas será que é só em períodos assim? Ou seria sempre – e a gente apenas não percebe, porque, afinal, precisa aqui e ali de um tempo pra recompor coração e mente? Vamos ver no próximo lote de filmes a sacar na locadora – e nos livros que virão depois de um marco obelístico como é a PEDRA de São Suassuna.

*Para ler mais sobre essas e outras recentes sessões de cinema caseiro, vá à Hamaca, clicando aqui.

Um comentário:

ana sua mana disse...

sebá, pedro está lendo a pedra do reino, e se encantou com ariano. virou fã. beijins.