sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

A alegoria da Pedra


O Rio de Janeiro tem as escolas de samba, o Norte do país tem o Festival de Parintins, o sertão central suas cavalhadas, mas é no Nordeste onde estão os grandes artífices da arte da alegoria. Não a alegoria eventual do Carnaval dentro ou fora do salão, mas aquela outra, a grande ilustração do painel de um tempo e lugar, especialmente se tal tempo e lugar forem bem menos exatos do que sugere o mero calendário – e mais simbólicos porquanto contenham em si os pontos cardeais bem menos precisos de uma determinada cultura.

A PEDRA DO REINO, o calhamaço civilizatório de Ariano Suassuna que acabei de ler estes dias, depois de vencer qual esquadra nostálgica os mares tormentosos de contos, causos e mitos que se debatem qual marolas narrativas em encrespada prosa sertaneja, estará certamente entre as cinco maiores dessas alegorias brasileiras que ora definem e circunscrevem, ora ampliam e projetam as pontas soltas de novelo composto por uma terra e sua gente.

A PEDRA DO REINO é assim, essa alegoria que tudo abarca em sua sede semi-árida de sombrear Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, essa minipátria de território delimitado e expressão sem fim de onde saíram o autor do livro, seu antiprotagonista quixotesco e o autor dessa avaliação apressada. Glauber Rocha, outro nordestino a primar pelo apego à alegoria, foi pródigo nas suas, construídas em celulóide para borrar em telas de cinema as imagens difusas de cangaceiros, beatos e oprimidos. Suassuna, na PEDRA, inscreve sua alegoria em palavras filtradas aos gêneros que antecedem a gênese de suas crias – o romance medieval, a releitura de Cervantes, a poesia de cordel, o repente fugidio, a prosa picaresca e o que mais o barbante dessa tradição enovelar.

O resultado é como um painel de Newton Navarro, um daqueles murais de Portinari adaptados ao pincel da palavra, à lavra da prosódia que regramatiza o falar e o escrever conforme o idioma paralelo do sertão seridoense, como João Guimarães já havia feito com as contrações lingüísticas e quase surreais do sertão central. A alegoria da PEDRA é assim como um grande estandarte de cores vívidas embora recoberto por uma mui coerente camada de poeira de Soledade e Juazeirinho, ali na Paraíba entre o seridó potiguar e o frio de Campina Grande, a pátria particular onde Suassuna foi buscar figuras tão representativas quanto o autonominado nobre de extração paralela à monarquia oficial brasileira que é este seu Dom Pedro Dinis Quaderna e o Zé povinho de língua atirada, criatividade de sobrevivente e reputação gatuna que é João Grilo.

Neste grande estandarte escarlate que é a PEDRA, linhas de palavras e sentenças compostas à guisa de um grande depoimento perante a autoridade judicial sempre comprometida são costuradas numa imensa narrativa nem um pouco linear. Ao longe já se divisa na flâmula seus bordados cheios de reentrâncias que permitem incrustar no pano os mil e um detalhes indispensáveis à melhor apreciação da visão geral do desenho. Um iconografia que brota do chão seco, faz-se impregnar no estandarte tremulante e finalmente se oferece ao autor-artesão para ser entalhada na madeira dessa xilogravura literária que também é o romance.

Entre o abrir e o fechar das setecentas e tantas páginas do livro, o leitor experimenta o braseiro da temperatura local aquecida pela presença de tipos que a terra não para de gerar e fundir, numa profusão de rude gaiatice que garante o orgulho mínimo a que um povo tem direito no dever de ofício que tem todo homem de se manter, mais do que vivo, notável. É assim que Quaderna, ludibriando pabulagens oriundas da direita, da esquerda, da metrópole e dos rincões, dos literatos e dos pragmáticos, dos fortes e dos débeis, impõe-se como figura central naquele estandarte romancesco que dá face, cor, emoção, ferocidade e sobretudo verdade à narrativa maior com que Ariano Suassuna revestiu aquele esquecido e vasto, embora geograficamente limitado, sertão nosso.

Estamos todos remotamente ilustrados nessa PEDRA, qual pintura rupestre em lajedo desprezado como os muitos que há pelo Seridó potiguar e paraibano – ou por outra é ela que brilha cavernosamente nas entranhas mal exploradas das furnas sertanejas que guardamos internamente, embora nem sempre estejamos lembrados disso.

Um comentário:

Rosália Maria disse...

Tião, há 4 anos atrás, devorei A Pedra do Reino em um carnaval em Acari. Confesso que juntamente com Cem Anos de Solidão, figura entre os melhores livros que já li. Encontrei até alguns personagens em Acari. Deu-me vontade de reler.