sábado, 7 de fevereiro de 2009

Pedra de rosas


Quando uma rabeca e uma guitarra se encontram num beco, o som que vaza das paredes carcomidas desta cidade velha tem a potência de rituais esquecidos e o vigor dos mais ansiosos músicos de bermudas. Porque a rabeca range por dentro, enfiando a faca na alvenaria das ruínas da gente, enquanto a guitarra como que peneira o pó de cal que jorra de tais infiltrações. E se você pensa que estou falando de museologia ou arquitetura colonial, enganou-se quadradamente. Isso aqui é puro Rosa de Pedra, a banda natalense formada predominantemente por meninas que reescrevem, em rangidos, batuques, raps e cantos popularmente impostados a pantanosa flor de mangue da padroeira pagã Zila Mamede.


Devia ser terça-feira. E depois da praia, como vem se tornando quase rotina desde o início desta temporada, capotei no sono por boa parte da tarde deitado na rede quente pero ventilada do Guaíra. (um parênteses: não sei se o resto de Parnamirim e Natal inteira sabe mas para além das matas que delimitam os predinhos do Guaíra há um ventilador natural que quase nunca pára de rodar suas hélices invisíveis, de maneira que, depois da esquina da Deodoro com a João Pessoa, não há num raio de 300 quilômetros lugar algum mais ventilado. Fecha parênteses).

Acordei e, sonambulizado pelo suor das umidades que o mesmo ventilador envia às nossas células, vaguei pela sala quando vi o petardo que Titina passou e deixou pra gente em cima da mesa de madeira bruta pintada de branco. Era o CD da Rosa de Pedra, que logo eu colocaria para tocar e instantaneamente perceberia que se tratava definitivamente do disco destas férias, da música potiguar que vai marcar meu imaginário sonoro durante todo este ano, do punhado de sambas, canções, funks e outros ritmos potiguarizados que passarão a ocupar um cantinho amoroso no meu coração de consumidor abestalhado da música local.

A ritualística trepada da rabeca rouca com a guitarra furiosa vem logo na primeira faixa, embalada no sex shop sonoro formado por uma rubra e aveludada parede percussiva onde tudo bate e volta, tudo ressoa e se amplifica. Minhas caixinhas de som defasadas de 15 anos que eu deixei aqui no Guaíra para ter onde ouvir música nas férias mal dão conta de conter em seus auto falantes os orgasmos múltiplos dessa explosão. E você fica naquela: será que a Rosa segura essa onda pelas outras 14 faixas do CD – sim, porque é difícil esse negócio de caminhar no meio-fio do pop sem perder de vista os paralelepípedos das sonoridades telúricas, ou o contrário.

Pois relaxe, que a Rosa conseguiu: o disco é um aqui e ali que ora soa blues notívago tipo Bar do Buraco dos anos 80 – certamente uma influência da presença de Eduardo Taufic na produção – ora pratica sem vergonha de ser elegante e informativo o samba-funk que descadeira bundas mulatas morros afora. O ritmo, por sinal, é o título de uma das faixas. Ainda é possível encontrar hits perfeitos e acabados – e se eles não caem na boca do povo muito além do Beco da Lama é só porque as rádios (e não só as de Natal) foram todas vítimas da segmentação mais burra. Caso contrário, o refrão “bola no pé, bola na fé, bola de chiclete” já estaria martelando na sua cuca, meu irmão, como está na minha. Assim como toda a faixa “Ludo”, que começa com uma invocação tipo negão Melodia e termina com um outro refrão estilo levanta a poeira que se instala sem pagar aluguel nas papilas auditivas de quem as tiver: “Bota a roupa pra secar; bota cachaça na mesa; ludo não é dama não; mas desconecta tristeza”.

“Ludo” é produto da imaginação sonora de Ângela Castro e Tiquinha Rodrigues; “Bola de chiclete” é um insigh pop-socioantropológico de Ângela, sozinha. E eu não consigo deixar de ficar arrepiado enquanto escrevo isso. Acontece – e deixei pra dizer isso depois, de propósito – que Ângela e Tiquinha, essas duas rosas solares de contas e pedras, são também, e há anos, minhas vizinhas de férias. Lembra do ventilador oculto além das matas que delimitam o Guaíra, nas barbas verdes de Nova Parnamirim? Pois fique sabendo que o ventinho que ele produz também tira proveito das peles das meninas. É que elas também habitam os predinhos do Guaíra III, no mesmo bloco onde passamos pelo menos uma semana todo ano. É por isso que elas – em que pese Toni Gregório (guitarra, bandolim, violão e viola); Betão Tavares (baixo); Wagner Tsé (bateria e percussão); Concita Alves (percussão e vocal) e Jailton Torres (percussão) – para mim são a alma visível da Rosa de Pedra. Que os outros não fiquem sentidos, mas passar anos e anos de férias encontrando as meninas nas escadas ou em casa mesmo, ou vendo elas brincando com Cecília e Bernardo e, claro, sabendo que elas também fazem parte do circo sonoro que realimenta a música de Valéria Oliveira, é uma coisa. Outra, bem diferente e muito mais impactante é acordar de um sono pós-praia e pós-tudo e achar em cima da mesa o CD que a banda delas gravou e botar pra ouvir. Uma atitude tão favoravelmente demolidora que, daqui por diante, elas tampouco serão as mesmas diante dos meus olhos de vizinhos ocasional. Capaz de, ao passar por elas, eu me ajoelhar, fazer a mesura que se oferecia antigamente aos reis, afastar-me educadamente e lhes dar passagem, mudo de timidez e reverência. Salve, Ângela e Tiquinha.

Tiquinha que, em “A lavadeira”, enxerga devoções populares no ofício dos rios e riachos dos sertões e litorais ancestrais. “A crença é tanta que a lavagem é santa”, diz a levada. Ângela que pratica sínteses velozes e certeiras, como em “na rua do menino nu; com a bala na boca; debaixo de sete palmos; mais um com a bala na nuca”, em “Bola de chiclete”, que não fica só no refrão, não. Quando as duas se encontram, temos uma compositora de quatro braços, duas bocas, dois cérebros e quatro dutos auditivos que apagam seus excessos para fundir em raggae a arnaldoantuniana “Transe”. Tenho certeza de que essas meninas sempre ouviram o ex-titã, como escutam, preguiçosas sobre as almofadas, Nação Zumbi, Novos Baianos, Clara Nunes, Zé Ramalho e, naturalmente, o negão Melodia.

Pra terminar: tem ainda aquele tipo de cantiga que, espichadinha mais um pouco só e terminaria numa saga sonora do tipo “Faroeste Caboclo”, que é “Jerônimo” – o João de Santo Cristo que não foi pra Brasília, mas pro estrangeiro. “No pingo do meio dia; gritava os sertão no peito do homem”. Em “Sotaque”, um tapa com luva de xique-xique que faz vibrar secretamente o coração do nordestino: “tenho cara de operário mas não sirvo a você; eu não pareço com você” (e não tem jeito, eu me lembro daquele outro Arnaldo Antunes, “eu não sou da sua rua”, com a mesmíssima questão numa geografia completamente diversa).

Não sei onde o CD está à venda, mas tenho certeza de que quem lê este blogue é gente esperta que sabe onde achar o que procura. Só não vai conseguir um exemplar autografado por Ângela e Tiquinha como o que tenho aqui comigo – e que, de fato, foram elas que deixaram lá no meu mocó de férias, por meio de Titina, a minha ponte a quem mais uma vez agradeço por ter me posto em contato com esse mundo de rosas de pedras raras.
CORREÇÃO: como grande parte do que nos chega de novidades culturais de Natal chega praticamente sempre pelas mãos de Titina, cometi um engano; Rejane acabou de ler o post e me corrigiu, dizendo que foram as próprias Ângela e Tiquinha que lhe entregaram, em mãos, o CD da Rosa de Pedra. Obrigado, garotas.

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