domingo, 15 de fevereiro de 2009

O solar do Gargalheiras






Junte o vento do litoral com a paisagem do Seridó, providencie uma trilha sonora que lembre marolas chacoalhando sobre pequenas praias arenosas, estenda no firmamento um sol inclemente de sertão, decore os arredores com um colar de colinas que formam uma serra incrustada de rochedos salientes, tenha em mente um varadão de parapeito amarelo, deite na rede, relaxe e aproveite. Você está – digo, nós estamos, e você há de me perdoar por dizer isso dessa maneira – à beira da barragem Gargalheiras, na casa que José Virjânio, comerciante e empreendedor de Caicó e primo de Rejane, construiu tanto para o proveito da família quanto para alugar aos viajantes espertos e turistas das cidades vizinhas que, qual integrantes de um clube exclusivo, conhecem o valor de estar neste lugar felizmente nem um pouco badalado.

Não é a Pousada do Gargalheiras, de que certamente os leitores do Seridó e de Natal já tomaram conhecimento – alguns quem sabe até já se hospedaram por lá. A locação desta postagem do Sopão, que está sendo escrito in loco (embora só possa ser postado depois, porque o G3 da Claro é um dos habitantes do planeta que desconhece esse lugar), é uma casa rústica, mas ampla, arejada como poucos lugares no mundo, com três quartos equipados com banheiros, todos os aparelhos e utensílios domésticos para a sobrevivência de uma família descolada – e uma paisagem carregada com o perfume da região.

O melhor mesmo é a varanda, que eu prefiro chamar neste caso de alpendre – porque a sonoridade poética dessa última palavra tem mais a ver com a qualidade sertaneja do lugar e do horizonte que ele apresenta aos olhos em 180 graus de montanhas, muita água, uma infinidade de rochedos, uma casinha aqui e outra acolá. Do alpendre se tem uma visão cinematográfica do Gargalheiras, mas não se trata de uma tela que projeta uma imagem distante. Não: é uma visão “de cinema” como diria o popular, mas ao mesmo tempo é uma paisagem que está a poucos passos de quem a observa. Um panorama que seu pé pode pisar, com uma atmosfera real para o seu nariz respirar e um lago onde você pode se banhar.

E aqui eu peço licença às senhoras cianobactérias que habitam indevidamente, pela ação irresponsável da falta de providências dos homens da terra, as águas da barragem. Peço licença para dizer que não deu pra resistir e tomei banho nas prainhas da barragem como se ali sinal das substâncias nefastas não houvesse. Fiz uma espécie de suspensão da realidade, assim como um leitor que embarca numa história tão irreal quanto fantástica e sorve o prazer da narrativa indiferente às mentiras nelas contidas. No caso aqui, não se trata de mentiras – mas de verdades incômodas embora autênticas. Mas, diante da água – cuja aparência, devido às cheias do ano passado, está muito mais para atrativa do que para repelente – o visitante lembra que, no chuveiro onde vai tomar banho mais tarde a água será a mesma da barragem e cai no lago, deixando boiar por agradável período a consciência do risco. E, naturalmente, não é possível negar às crianças um prazer infantil a que os adultos não resistem. Para o interiorano, banho de açude é um patrimônio natural que a gente transmite o quanto antes aos filhos.

Ao lado da casa, há goiabeiras cheias de frutos maduros e um simpático pé de siriguela em condições idênticas. Cecília, que é uma menina muito medrosa e comedida, aprendeu em dois tempos a subir no pé de siriguela, a que já apelidou de “minha árvore”. De vez em quanto, você está aqui em cima na moleza ventilada do alpendre e a providência lhe presenteia com a visão de um canoeiro remando lentamente açude acima. Ou então é uma garça branca que passa voando em câmera lenta. Outra hora, ciscando a terrinha à beira da água, eu e Cecília encontramos uma tartaruga pequenina, menor que a palma da mão de um adulto, navegando entre os gravetos e o lodo na margem da praia. Foram horas acompanhando a evolução da tartaruga, porque Cecília agora pegou uma mania: quando está em um lugar – qualquer lugar que signifique estar de férias – não quer mais sair. Foi assim em Ponta Negra, foi assim no pátio do Centro de Turismo, foi assim num passeio que fizemos ao mirante de onde se vê todo o Acari. De maneira que foi preciso resolver tudo à base da boa e velha ficção – sim, ela mesma, que história para crianças também se cria conforme a exigência do momento. De maneira que a tartaruga estava com muito sono, precisava dormir e foi procurar o quarto dela numa área mais cheia de gravetos, sem querer ser incomoda por olhares de humanos curiosos. Cecília, que é muito tolerante, compreendeu e voltou pro alpendre comigo.

À noite, temos as redes entre os mil armadores do alpendre, uma leitura boa, a ventilação correspondente ao alto de uma duna de Natal e, dependendo do dia escolhido, aquela lua, como diz Cecília, “direita”. É que, na classificação astronômica da nossa especialista de três anos de idade, existem duas luas – a quebrada e a direita; quer dizer, aquela meia-lua de quarto crescente e aquele luão cheio das noites do sertão. E com a lua cheia funcionando como refletor natural, a água da barragem é tingida pelo brilho prateado do reflexo que parece inscrever a rota para algum paraíso perdido sobre o balanço das águas. Para dormir, a gente recomenda abrir bem os ouvidos para não perder o chuá-chuá das marolas de água doce.

É assim a vida no Solar do Gargalheiras, que você também pode alugar para um final de semana, embora o melhor mesmo seja a tranqüilidade abandonada do segunda a sexta, porque há um bar por perto (infelizmente, hoje em dia, sempre há um bar por perto) que estraga tudo tocando umas músicas bem pouco bucólicas. Para alugar o solar é preciso que você se disponha a ter algum trabalho para descobrir como entrar em contato com José Virjânio. Porque este é o tipo de serviço turístico que não está nas folhas, na publicidade fácil, mas no boca a boca de quem conhece o pedaço. Não se trata de exclusividades finas do tipo “conheço um lugarzinho especial que me faz melhor do que o resto da humanidade”, mas de um sítio realmente remoto e felizmente ainda não integrado ao roteiro oficial do mapa turístico do estado. Pior para o mapa turístico do estado.

Digo felizmente porque se é para estragar esse lugar tão bonito que dispensa badalação já bastam as tais cianobactérias que o inverno do ano passado diluiu mas não matou. Passar um dia e duas noites neste lugar tão perto (geograficamente) e ao mesmo tempo tão distante (idealmente) só deixa a gente convencido da importância do esforço cidadão que fez o acariense Jesus de Miúdo em alertar para o estado de contaminação da barragem. Por isso mesmo sabemos que vamos sair daqui com o corpo sujo de cianobactérias, mas a alma imensamente mais limpa graças à ação de outras substâncias, coisas misteriosas contidas nos reflexos aguados do luar, dessas que microscópio algum consegue ver por serem tão grandes quanto a amplitude do sertão que mora dentro da gente, onde quer que a gente vá.

O Solar do Gargalheiras é esse farol a vigiar a barragem, suas criaturas férteis ou nefastas, seu vento litoral redirecionado, nossa irresponsabilidade humana crônica de deixar que tal panorama seja poluído. Descubra o contato com José Virjânio, acerte o aluguel, venha ver e junte-se a Jesus na campanha pela preservação do lugar. E agora, senhores leitores e senhoras cianobactérias, dêem-me licença que eu vou apreciar a lua nascendo por detrás da serra.

P.S.: Eu não devia, mas vou facilitar a vida de quem ficou num pé e noutro pra passar uns dias nas “casas de Zé Virjânio” (que é como elas são conhecidas em Acari). Fale com o próprio no telefone 9962-1223.

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