segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Benjamin


Rodado a partir de um conto de Scott Fitzgerald, o filme “O Curioso Caso de Benjamin Button” abre com uma breve, sugestiva, poética e tocante narrativa que, sozinha, descartada de tudo o que vem a seguir, já valeria o ingresso. Um relojoeiro deprimido com a morte do filho na carnificina da I Guerra Mundial trabalha arduamente para produzir o relógio que será o orgulho de uma estação ferroviária. No momento da inauguração, povo e autoridades presentes, desce o pano e todos descobrem que a peça, embora marcante e bonita como se esperava, tem uma característica própria e incômoda. Trata-se de um relógio cujos ponteiros andam para trás.

O homem que o fabricou explica, com pesar: fez o relógio assim, contando o tempo inutilmente para trás, para que ele possa trazer de volta aos lares os garotos que a guerra arrancou de casa e matou. Em seguida, o relojoeiro pede desculpas caso alguém tenha se considerado agredido com a surpresa. Em matéria de cumprimento, desculpas e gentilezas, nós, na platéia, quase deixamos escapar um sincero “obrigado” pelo gesto e pelas palavras do relojoeiro. Na verdade, pelo poder da metáfora que ele nos entrega logo no início do filme e que, logo vamos descobrir, vai permanecer pairando sobre todos os acontecimentos na história que está por vir.

A história do relógio que anda para trás é o prólogo perfeito para preparar os olhos, os sentidos e o coração do espectador da fábula estampada na tela. Desde o momento em que surge pela primeira vez no filme, com o rosto de ancião virtualmente justaposto ao corpo de um idoso, Brad Pitt sugere a expressão de quem já viu tudo – sem que tenha, de fato, vivido praticamente nada. Ele é o próprio relógio de ponteiros que andam para trás.

O Benjamin Button de Brad Pitt está numa encruzilhada poética mas também um tanto quanto trágica que mistura inexperiência emocional com sobrecarga física: é um menino de cinco anos num corpo de um velho de 70. E, mais que a maquiagem ou o efeito especial, é o olhar, entre confuso (mas calmo, como o dos mais velhos) e curioso (sugestivamente vivo, com o dos bebês) de Brad Pitt que dá credibilidade à fábula e nos lança neste jogo de especulações sobre vida, morte, juventude, maturidade, descoberta, crescimento e velhice. Não necessariamente nesta ordem.

Há muitos momentos marcantes que corroboram essa visão do filme. Um dos mais exemplares é o encontro no tempo entre o personagem principal e a bailarina Cate Blanchett, de uma beleza tão intensa que parece ser ela o verdadeiro motor do rejuvenescimento de Pitt. Como já se sabe à exaustão neste momento, Benjamin Button nasce velho e vai ficando cada vez mais jovem ao longo do filme, até virar um bebê octogenário e senil. Cate, enquanto isso, como acontece com as pessoas ditas normais, segue o caminho oposto. Os dois são apaixonados desde criancinha – embora o conceito de criancinha nunca tenha se ajustado muito bem a Benjamin – e o próprio andamento da fábula já permite prever que o relacionamento dos dois, em idade adulta, vai se chocar com a diferença temporal que tanto os aproxima (pelo inusitado da situação) como os separa (pelos efeitos naturais da ação do tempo).

É como aquela outra fábula cinematográfica, “O feitiço de Áquila”, em que os amantes nunca podiam se encontrar, porque durante parte do dia um deles se tornava um pássaro. No caso de “Benjamin Button”, o fenômeno parece ser menos cruel, já que o encontro, de fato, acontece e por um bom período de tempo. Mas, exatamente por isso, a separação inevitável torna ainda mais pungente o drama de Pitt e Cate. O tempo não pára, até para quem vive de trás para frente, não importa – e aqui reside um dos pilares da especulação maior que o filme pretende construir. É preciso saber conviver com essa qualidade transitória das pessoas, dos lugares, das situações e do mundo. Benjamin Button, essa anomalia que nos comove por ter de, a certa altura, desaprender a andar e a falar, nos guia nas trevas desse aprendizado – e talvez por isso o filme venha com uma luz pesada, de meio tons míopes e indecisos.


“O curioso caso de Benjamin Button” é um vasto catálogo de especulações ligeiras, compacto o suficiente para caber numa sessão de cinema, mas rico e democrático o bastante para ser lido por gente de idade, formação, repertório e experiências variadas. Neste sentido, não se engane: é o grande filme de 2009, o “Forrest Gump” da vez, o “Rain Man” da hora. A diferença está no tratamento, o menos espetacular quanto parece ser possível neste tipo de cinema. O andamento é sempre lento, a fotografia escurecida, a postura do protagonista menos ativa do que de costume. Benjamin estuda a própria trajetória incomum espelhando-se em pessoas que encontra pela frente, gente espetacular sob a pele de seres cinzas, de tão comuns. Por isso ele não precisa, como o Tom Hanks de “Forrest Gump” , mostrar-se extraordinário dentro das próprias limitações. Marinheiro por profissão, ele navega – na vida e nas aventuras no mar, e isso basta.


Falei em “aventura” e essa bem pode ser a palavra chave para decodificar “O curioso caso de Benjamin Button”. Temos ali, cifrada como fábula, a apologia da vida humana como aventura pessoal e intransferível. Vide o epílogo do filme – sim, assim como conta com um prólogo inspirado, “O curioso caso de Benjamin Button” também veio equipado com um epílogo bem didático. É um apêndice quase publicitário de tão atraente, à guisa de explicação para os integrantes da geração cinema-no-shopping que porventura tenham se distraído com a pipoca e deixado escapar a essência do filme.

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