sábado, 28 de fevereiro de 2009

Nas telas, a banalidade do mal



Segundo a canção, "está provado que só é possível filosofar em alemão". Lembrei do verso de Caetano Veloso a propósito do filme "O leitor", mais um exemplar cinematográfico a demonstrar os danos que podem ser causados quando ocorre um acidente bem no cruzamento cruel entre a História com H maiúsculo e a vida privada com v e p em caixa baixa. Como bem se sabe, "O leitor" conta a história do adolescente que tem um caso com uma mulher mais velha que, ele vai descobrir mais tarde na pior das circunstâncias, foi uma cruel guarda de campos de concentração durante o nazismo. Lembrou da tese da "banalidade do mal", da filósofa - alemã, que foi viver nos EUA - Hannah Arendt? Eu também. Lembrou de outro filme alemão ainda recente, "Adeus, Lênin". Comigo também aconteceu o mesmo.

Vamos ao essencial: "O leitor" é um filme pausadamente narrado em três atos bem definidos. No primeiro, temos o encontro do garoto de olhar quase angelical com a mulher que tudo vê com olhos quase cerrados, de tão duros (é o sempre eficiente olhar da atriz Kate Winslet, que todo mundo lembra por causa da heroína romântica do "Titanic", o que é uma injustiça colossal, porque em tudo o mais que fez é sempre soberba). No segundo ato, dá-se a revelação da verdadeira identidade dessa mulher e aquela tal História com H maiúsculo passa a protagonizar o filme, jogando sobre tudo suas sombras incômodas, tirando de baixo dos tapetes alemães a poeira da culpa coletiva que a grande guerra escondeu e só mais tarde, com a descoberta do holocausto e os julgamentos de Nuremberg, contaminaram o ar com suspeitas difusas sobre responsabilidades individuais e coletivas. Neste estágio, parece que o filme vai sucumbir à discussão social, política e antropológica, relegando o drama que lhe deu origem - a relação sempre deslocada entre o garoto ingênuo e a mulher mais velha e lacônica - para algum lugar onde a vida pessoal não tem importância alguma diante do drama coletivo. Mas é um engano, porque a certa altura vem o terceiro ato, quando se encerra o julgamento da acusada e o filme aproveita para retormar - com força inesperada para o espectador que se desviou junto com a trama de sua matriz original - o encontro singular entre o "garoto" (agora, homem feito e às voltas com os dilemas da Justiça e uma vida amorosa abalada pelo seu relacionamento primeiro) e a "mulher" (agora, um idosa prestes a deixar a prisão).

Além das pausas visuais marcantes, de um certo silêncio sempre oportuno e revelador, das interpretações genuínas, do clima das várias épocas que vai impregnando cada cena, contribui para a qualidade do filme essa muito clara estrutura em três atos que mostra, ao fim e ao cabo, como sofre o ser humano que é atropelado pelo trem da História da maneira menos literal que a expressão sugere. O casal protagonista de "O leitor" é pisoteado, com atraso, pelo drama que marcou uma geração inteira - mas não o é no contexto emoldurado em que a guerra e o holocausto se deram, e sim na arena não demarcada da vida mais comezinha do período de paz. Por isso mesmo, a dor é ainda maior. Ao contrário do que é efetivamente mostrado em outro filme similar - "A escolha de Sofia", de 1982, com Meryl Streep - ninguém morre asfixiado num banheiro inundado por gases letais, nenhum personagem aparece esquelético com sinistros uniformes listrados. Mas o dano que se dá por dentro do carrasco e de sua vítima - carrasco e vítimas em circunstâncias deslocadas, mas ainda assim o carrasco e sua vítima que são a mulher e o garoto - é tão visível e concreto quanto o Portal de Brandemburgo.

Dito isso, resta lembrar que o filme, em sua parte mais política mas nem por isso menos pessoal, confirma soberbamente aquela tese de Hannah Arendt, a que a filósofa chegou enquanto acompanhava o julgamento de Adolf Eichmann, um nazista de quinta escalão que vivia clandestinamente em Buenos Aires e, capturado por um comando israelense, foi submetido a um dos julgamentos espetaculares que se seguiram à tragédia da II Guerra. No livro "Eichmann em Jerusalém", que reúne os textos da vasta reportagem escrita por Hannah Arendt enquanto se dava o julgamento, a filósofa mostra o quanto de banal, comum, ordinário e quantos mais adjetivos sinônimos houver havia na conduta do acusado - e reclamava, com os brados que uma linguagem escrita de estilo elegante consegue emitir, sobre o erro cometido naquela abordagem que, contrariamente à sua análise, pretendia fazer do réu um vilão de castelo medieval. Para Hannah Arendt, isso só dificultava o entendimento verdadeiro do que levou uma nação como a Alemanha a perpertrar tudo o que se fez contra os judeus, ciganos e outros segmentos humanos durante o nazismo. Isso só impedia que se enxergasse algo muito mais grave - que o crime dos nazistas, de primeiro, segundo ou último escalão, era uma conduta que comprometia a raça humana inteira, pelo simples fato de que parte dela fora capaz de praticá-lo. Era preciso ter coragem de abrir os olhos para esse fantasma - e não apenas simplificar tudo superlativizando o burocrático Eichmann como encarnação do mal.

O mal, sugeria a filósofa, é mais banal do que parece à primeira vista - é isso o que está no livro, de leitura quase barroca graças ao manancial verbal que a autora usa para demonstrar sua idéia sobre a maldade e como ela opera em caráter extraordinário, como se deu no caso do holocausto. Quando você vê, no filme "O leitor", Kate Winslet dizendo ao juiz porque não poderia abrir as portas de um igreja em chamas para salvar a vida de prisioneiras judias presas lá dentro entende perfeitamente o que Hannah Arendt quis dizer no livro "Eichmant em Jerusalém".

Quanto a "Adeus, Lênin", o parentesco é de conteúdo, embora os gêneros praticados sejam inversos. Neste filme, em que uma mulher acorda de um coma de anos e não pode ficar sabendo que o muro de Berlim caiu há tempos, o registro é cômico. Mas é a mesma História com H maiúsculo interferindo na vidinha de todo dia com v minúsculo. Apenas o que seria cômico em um filme torna-se trágico em outro.

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