quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Roque Santeiro, a escola



Em reprise na tv fechada e de volta em caixa de DVD, a clássica novela de 1985 funciona hoje como uma aula de cidadania política dada por um professor chamado tempo

Numa de suas canções, Caetano Veloso dizia que a telenovela é a educação sentimental da classe média nacional. Pois a volta de "Roque Santeiro" no canal de reprises Viva bem pode relembrar esta tese ao adaptá-la para outro contexto, o da política, dos direitos sociais, da educação ligada à cidadania que as novelas brasileiras também sabem explorar muito bem, dependendo da oportunidade. De "Roque Santeiro" pode-se dizer que funcionou - e ainda funciona, em parte - como a educação política da antiga (e da nova, por que não?) classe C, aquela camada do meio social que, sem acesso histórico à área de humanidades das universidades públicas mais procuradas, vem aprendendo na prática e sem discurso a ocupar seu lugar de direito no mapa do Brasil.

"Roque Santeiro" é exemplar ao ir direto ao ponto - coisa que o jornalismo, por exemplo, nem sempre, ou quase nunca, faz: em Asa Branca, a cidade a espelhar o Brasil em que a novela se passa, quem manda e desmanda não é o prefeito (leia-se, o presidente da República), mas o criador de gado e exportador de carne verde Sinhozinho Malta. O autor original, Dias Gomes, não perdeu tempo em denunciar a política como valhacouto de aproveitadores e imprestáveis - embora sua denúncia em forma de novela contenha essa informação, claro - e mostrou logo quem manda no pedaço: o poder econômico, sempre acima, aquém e além da lei.

E essa distância nem um pouco protocolar entre dinheiro e poder está mais do que bem explicitada em uma das sequencias mais importantes da novela: aquela em que Sinhozinho Malta é instado a entrar numa delegacia na condição de indiciado por um crime e lá dentro tem que, contrariado como ocorria nos idos de 1985, "tocar piano" no mais que conhecido sistema de identificação criminal. Há pouco tempo, pudemos ler e ouvir jornalistas escandalizados com os abusos da Polícia Federal que obrigava gente importante, com domicílio e reputação de empresário, a ser algemada e ainda aparecer assim na televisão. Pois esse prurido recente tipo Daniel Dantas ainda era um reflexo dos padrões asabranquianos da nossa história relação entre lei, dinheiro e poder. O banqueiro de recentemente nada mais era que o coronel da novela de meados dos anos 80. Todo mundo assistiu à novela, mas nem todos se mostrariam dispostos a admitir essa ligação. Não poucos se negariam.

É curioso que essa sequencia não conste do almanaque das cenas mais lembradas de "Roque Santeiro", como o célebre final à Casablanca ou a morte de Zé das Melhadas afogado no objeto da própria usura. Falando nisso, citações e homenagens da reta final da novela não ficam na recriação da despedida de Ingrid-Porcina e Roque-Bogard no adeus ao pé do avião: no desfecho da novela os autores também recorreram a "O Homem que Matou o Facínora", o western moderno de John Ford que mostra como um mito falso como o próprio Roque Santeiro deu sustentação a uma cidade qual Asa Branca - e o dilema consequente entre abrir o jogo ou manter tudo como está para pelo menos garantir um mínimo de civilidade no oeste americano em formação. Hoje, terminando de rever a novela em DVD, assisti à cena de que não lembrava. Está lá, no disco 16, o último, o momento em que um Roque-James Stewart atira em Navalhada e pensa tê-lo matado quando, na verdade, quem disparou o tiro fatal foi um Sinhozinho Malta-John Wayne incógnito por trás de sua caminhonete ruralista tipo rolo compressor.

O último capítulo - quer dizer, o último disco da caixa - ainda traz uma cena literariamente muito divertida, por metalinguisticamente irônica. É o momento em que o cineasta Gerson reune a equipe pra contar do novo tratamento que pretende dar à 'fita" que roda em Asa Branca: uma ficção desvairada em que o falso mito retorna à cidade vivinho da silva e coloca tudo e todos em xeque. Chega a ser um biscoito fino na novela popular este momento de elaboração que muito deve ter divertido os autores enquanto a roteirizavam e redigiam. Um personagem debocha: "É, daria uma boa novela".

"Roque Santeiro", em caixa de 16 DVDs ou na reprise diária do Viva, é isso: metalinguagem do Brasil se entendendo e se explicando enquanto ri de si mesmo; sem ranço professoral e com uma noção muito exata do que realmente somos. Com direito a um elenco de monstros sagrados que deveriam ganhar homenagem todo santo dia - como esse Lima Duarte capaz de sustentar sozinho toda a segunda parte da história e aquele Armando Bogus que faz de Zé das Medalhas um monumento à mediocridade aparvalhada sem no entando desumanizar a criatura. E ainda com citações ultra-adaptadas à realidade local de clássicos tão populares quanto importantes.

Lição de teledramaturgia, aula de política sem empolação, cinema novo recriado à sua maneira na tevê aberta(vide elenco, de Yona a Othon Bastos), educação para a cidadania num tempo em que havia uma lei para o povão e uma outra, à parte, para quem tinha poder, "Roque Santeiro" extravasa a condição de novela e é uma verdadeira universidade informal que sabe-se lá como um dia aportou nas telas que brilham em nossas casas. E até hoje tem suas lições a dar, nem que seja pra mostrar que alguma coisa mudou - e mostrar como.

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