segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Os antepassados do Dnit


O governador instalado no Rio de Janeiro decide abrir uma estrada para Minas Gerais, numa mais que justificável iniciativa para encurtar de 45 para 15 dias a viagem entre os dois futuros estados brasileiros. Outro objetivo é evitar que o viajante tenha que passar por São Paulo, perdendo tempo e mantimentos - e não raro, vidas - num desvio que já não fazia sentido no difícil caminho entre a costa brasileira do Brasil do Século XVII e as então florescentes minas de ouro do sertão colonial. Um paulista, mais afeito na sua ferocidade temida à empreitada repleta de riscos, oferece seus serviços. Mas o governador prefefe um certo Garcia Rodrigues que ganha a concorrência mesmo com fama de sonegador e falso descobridor de lavras nas minas referidas. E não fica nisso: o mesmo governador ainda escreve uma carta ao rei onde informa que Garcia cobra menos pelo serviço - quando o que ocorre é exatamente o contrário.

Neste ponto já é possível imaginar o que ocorreria depois. Não se fala aqui dos dias atuais, mas do futuro imediato mesmo - embora a primeira tentação seja tão justificável quanto a estrada em questão. Sim, Garcia Rodrigues, filho do incansável Fernão Dias, o célebre caçador de diamantes - não apenas cobrou mais como também não entregou a obra completa. E esta foi inaugurada com trechos por fazer. Para completar a analogia cujo cheiro o leitor já há de ter farejado aqui, só resta dizer que o corrupto governador da Repartição Sul do Brasil de 1698 - Artur de Sá e Meneses era o seu nome - também era sócio de ninguém menos que Borba Gato, o bandeirante de colete antiflexas indígenas que todo mundo já viu em gravuras de livros didáticos. Este, por sua vez, era cunhado do Garcia "vencedor da licitação" para a abertura da estrada de pedras Rio-Minas.

Mais que uma analogia, temos aqui o que poderíamos chamar de "gênesis do Dnit" moderno nos tempos do Brasil colônia - aquela distante fazenda continental que só então, com a tão buscada descoberta do ouro do que viriam a ser as Minas Gerais, começava de fato a se tornar um lote mais valorizado nos mapas mundiais. E a aventura dessa descoberta, com as desventuras consequentes - como o caso da concorrência viciada pelo parentesco e pelos interesses econômicos mais sujos narrados no episódio que ocupa quase todo o espaço dessa postagem - estão em "Boa Ventura", o livro do jornalista mineiro Lucas Figueiredo que recupera em linguagem de gente o que foi o ciclo do ouro na terra de Aécio Neves. A edição da Record está em destaque neste momento mesmo em qualquer boa livraria.

Não há leitura melhor para quem acabou de largar o levíssimo "1808" do tão jornalista quanto Laurentino Gomes. É como voltar no tempo e seguir apreciando a mesma história - por sinal a nossa, ou uma das visões que podemos ter de nossa própria gênese como nação. O livro de Lucas, de fato, parece mais rico e substancioso do que o de Laurentino, embora os dois sejam ouro narrativo extraído do mesmo veio. Ambos têm um quê de reportagem especial que se lê com a avidez que a curiosidade histórica abençoa - mas no caso de Laurentino, a velocidade é tal que a sensação de superficialidade permanece ao se fechar a última página. No caso da "Boa Ventura" de Lucas, que o SOPÃO ainda não concluiu - mas já sabe que terá saudades quando o finalizar - há a vantagem de o tema ser mais restrito, e menos conhecido. Da viagem de Dom João VI ao Brasil e de como sua permanência aqui mudou o que viria a ser o país sabemos bastante, nem que seja das aulas escolares. Mas dos detalhes miseráveis da primeira corrida do ouro da era moderna nesta porção ocidental do mundo, bem menos. De maneira que se o livro de Laurentino soa como ouro de lavra, que se cata com facilidade à primeira leitura, o de Lucas tem algo de ouro de jazida, portadora de matéria mais escondida sob o solo aparente do que supõe o caráter nacional.

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