quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Lembrando Drummond (4)

Vamos ver se consigo escrever alguma coisa sobre ele sem recorrer à revistinha de intelectuais que está aqui do meu lado. Meu amigo CDA, se é que posso chamá-lo assim, bateu à minha porta pela primeira vez quando eu tinha apenas 12 anos. Para tanto, usou um livro didático. Pra vocês verem que não se deve desprezar os livros didáticos. Natural: era um tempo em que os livros a que eu tinha acesso eram quase sempre esses. Os outros eram os da biblioteca municipal de Parelhas, minha Alexandria setentista, que tanta literatura me forneceu, tanto quanto podia oferecer. Mas, salvo engano, Drummond lá não havia. Ou o aluno que eu era é que não se dava conta.

Havia, na biblioteca, Jorge Amado, esse iniciador infalível. Havia a dupla Machado-Alencar, esses focos de enganos que a gente lia sem a experiência necessária (ao menos no caso do primeiro). Havia uns clássicos impróprios que bibliotecárias pudicas e refratárias à leitura tratavam de manter longe de nossas mãos de meninos curiosos ("Vocês lêem rumances?", perguntava uma delas, disso nunca esqueci). Desde o início, é fato, Drummond chegou a mim, portanto, sem a solenidade da biblioteca. Chegou com a espontaneidade do livro didático de Português da sexta série, num daqueles textos regulares que abriam capítulos. Um daqueles textos que fatalmente iriam servir para o aluno indolente praticar concordância e regência, sintaxe e morfologia.

Meu amigo CDA chegou disfarçado: apresentou-se por meio de João Brandão, personagem de crônica, cujo trecho era apropriado pelo autor do livro didático. Tanto tempo depois, não lembro bem o que João Brandão fazia, que aventura desfiava, que aspecto de sua aparição serviu para que eu aprendesse um pouco mais de ortografia ou análise sintática. Só lembro que simpatizei com o personagem e guardei dele uma impressão de companheirismo - assim como a gente se lembra de um vizinho antigo.

Cresci, outros livros didáticos vieram, entrei para a universidade, encontrei novos amigos e, entre eles, apareceu-me, pela segunda vez, Drummond. E desta vez, quem o trouxe para perto foi um outro amigo, Jano Sérvio, colega do curso de Comunicação na UFRN, que cultuava as novas edições do poeta - por exemplo, o livro "Corpo", novinho em folha então. Foi quando decorei, de tanto ler, aquele poema das coisas findas - as tais que, muito mais que lindas, ficarão.

O poeta voltou e, como as coisas lindas, ficou. Quando encontrei Rejane, meu amigo CDA reapresentou-se uma terceira vez, como um padrinho informal da nossa união. Rejane era outra das pessoas ao meu redor que cultuava Drummond. Vez em quando eu comprava um livro do poeta que ela não tinha, na minha estratégia de manter-me indispensável à minha companheira. Assim, vieram livros de crônicas, o "Amar se aprende amando" que aproveitei para reler, e o derradeiro, o póstumo "Farwell".

Meu amigo CDA foi assim essa presença discreta e quase cotidiana, essa percepção poética que estava sempre por perto mas sem fazer barulho. Essa entidade que volta e meia desce da estante para dizer que a vida é feita de pequenas epifanias. Essa sensibilidade extemporânea que turva o mundo só para fazê-lo mais claro em seu impressionismo diário. Doce ou amargo, triste ou alegre, ocasionalmente animador ou momentaneamente deprê, é preciso saber levá-lo, com o instrumento da poesia que o velho livro didático um dia despertou.

Um comentário:

sandrofortunato disse...

Para quem quiser iniciar-se e/ou deleitar-se: www.memoriaviva.com.br/drummond
100 poemas (alguns em áudio na voz do próprio Drummond), fotos, dados biográficos... Uma pequena viagem. ;)