sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

2010 na poeira da estrada


*Para ler ao som disso aqui.


2010, como já deve saber quem lê este blogue há tempos, não foi um bom ano para nós outros. E se o último dia do ano amanhece mais uma vez branco de nublado em Brasília, com uma chuva de chicotadas finas e frias açoitando o habitante da cidade, tanto melhor. Pois que ao menos é coerente com os 364 dias que o antecederam. Não fosse assim, sob essa chuva de impropérios naturais em forma de neblina rancorosa, e eu celebraria a estação terminal desta temporada fazendo arder uma fogueira mítica em frente ao prédio. E nela jogaria, como nos suicídios simbólicos do livro "A Dança Imóvel" (Manuel Scorza), todas as pequenas desgraças com que fomos brindados de fevereiro pra cá, que 2010, pra ser justo, durou só um mês e pouco - janeiro e o seguinte, só até o carnaval, que passamos aqui na companha agradável de Carlos Magno, Rosa, Pedro e Luís.

Desde então, abateu-se sobre nós uma pequena maldição de Jó - e ele que me desculpe de usar seu exemplo terminal para lamento comparativamente tão corriqueiro. Mas cada um sabe onde lhe dói a provação pagã ou divina, profissional ou familiar, banal ou transcendente. A nós, doeu um bocado. E se foi suportável isso se deve apenas ao fato de que não tivemos tempo de chorar o leite - era preciso providenciar novas garragas antes que o líquido derramado azedasse o restante do chão da cozinha. Nisso, gastou-se energia que poderia ter sido combustível para novas levas de lamentações. Chegamos ao final com a sensação de quem engrossou um pouco mais o couro da espécie, o travo bucal que habita o olhar duro das pessoas testadas nar armadilhas das convivências, a desconfiança providencial de quem abraçou sem reservas outra gente a quem apressadamente considerou amiga. Não é bom dizer isso, mas também não convém falsear o sentido - 2010 termina com uma multidão de pés atrás. Não por desconfiança inata ou estratégia de autoproteção repensada, mas simples reação aos fatos.

Mas agora que acabou o ano - ao menos, o ano; o que embora não garanta nada, não deixa de ser uma superstição esperançosa - é hora de despejar isso tudo naquela mítica e imaginária fogueira a desafiar as chicotadas do chuvisco brasiliense. Se a você o ano também foi farto em reviravoltas e reparações, faça o mesmo, meu caro ou minha cara. Sinta a satisfação derradeira de ver derreter em gotas de plástico poluente diluído cada porção de desdém, soberba e carreirismo com que você topou nesta jornada enfim encerrada, ao menos segundo as leis do calendário. Observe a matéria fútil se desdobrando sob a labareda, aspire a fumaça que resulta de sua combustão nefasta e depois cuspa em cima das cinzas para deixar tudo para trás. Depois, diga alô para 2011 como quem encontra um velho conhecido que um dia lhe sorriu sem esperar nada nem prometer coisa alguma. E vá.

*Uma dica é embarcar no carro sonoro de B.B. King e Eric Clapton (vide link na abertura da postagem), a bordo de guitarras que urram blues tão raivosos quanto catárticos, e ao mesmo tempo - ou por isso mesmo - sentimentais. Afinal, uma viagem de encerramento digna de um ano que não pouca gente fica feliz em deixar sumir ao longe na poeira asfáltica da estrada.

Um comentário:

tete bezerra disse...

Muito legal esse texto Tião,fala de emoções,alguns desapontamentos,mais precisamente de esperança.Seu blog já é umas das minhas leituras de estimação,só falta agora conhecer vc e Rejane e combinarmos de tomar umas cervejas pra falar daquelas serras lindas do seridó,a da rajada é a minha pedra de calcutá/Quintana.