quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Grito da África


Uma articulação diplomática na área cultura está anunciando um esforço de fazer projetar no Brasil uma amostra maior do cinema feito hoje nos países africanos. "Um Homem que Grita" é o filme que abre este esforço, de acordo com o material de divulgação distribuído no cinema do Liberty Mall, onde a fita está sendo exibida em Brasília. É uma daquela ficções de caráter tão próximo da realidade e tão despido de qualquer espécie de adorno cinematográfico que se aproxima do documentário. E não de quaquer documentário, que este gênero está repleto de abordagens que misturam informação com entretenimento, mas do documentário mais seco, distanciado, frio. "Um Homem que Grita" (produção conjunta da França, Bélgica e República do Chade) gravita em torno de uma dupla de pai e filho no Chade, às voltas com dois impasse. Um é a difícil realidade de um país, como tantos outros do continente, ameçados tanto por governos corruptos quanto por movimentos armados violentos. O outro são os efeitos da globalização econômica que, com suas políticas de custos mínimos e resultados financeiros maximizados, ainda que à custa de sacrifícios humanos evidentes, também estende seus tentáculos a lugares tão miseráveis quando o exibido pelo filme.

"Um Homem que Grita" é um filme difícil à medida em que se estende. Torna-se mais e mais lento, contemplativo diante do sofrimento mudo, embora intenso, de seus personagens. Pai e filho gravitam em torno da mais que simbólica piscina do hotel em que trabalham, numa aparentemente estável rotina em meio a um país sujeito a algum tipo de conflagração. Um dia, no rigor global de ajustes econômicos, demissões são anunciadas. O pai não perde o emprego, mas fica sem o posto de chefe do serviço de manutenção da piscina, "cargo" que passa a ser ocupado pelo filho. Deprimido na nova função de agente de portaria, este pai perde também a própria identidade, transformando-se em metáfora do que ocorreu a toda a África, onde guerras, massacres e misérias se devem muito à reorganização territorial e política feita pelas antigas metrópoles européias quando do fim da coloniação mais que forçada, segundo critérios que ignoraram a geopolítica ancestral das comunidades locais.

Essa metáfora sustenta a verdade pungente do filme - e de sua tradução das mazelas do continente - mas não consegue tirar de sua projeção o peso de uma abordagem despida de qualquer chance de redenção. "O Homem que Grita" se deixa inocular pelo veneno de seu diagnóstico e deixa um sabor de água turva na boca do espectador, que poderá buscar algum tipo de refúgio diantes da crueldade plácida de suas imagens. Uma espécie estranha de postura cool que só se quebra - e mal - no dispensável e apelativo letreiro final, onde se convoca a platéia a descruzar os braços porque a vida não é, diz-se lá, um filme ao qual se assiste passivamente. A força do filme é até excessiva na descrição do panorama africano e, sendo assim, dispensa essa derradeira moral da história.

Mas é preciso dizer também que, para o brasileiro, "Um Homem que Grita" representa a África mais sombria, o que não falicita em nada a empatia com uma tradicional plateia brasileira. É como se um país africano quisesse apresentar por lá uma mostra do desconhecido cinema brasileiro e escolhese, por exemplo, um filme do cineasta Cláudio Assis, como "Baixio das Bestas" pra ficar num título bem didático. Um filme que enxerga o mundo da zona da mata pernambucana pelo viéis de que a região tem de mais lamentável - como a exploração sexual infantil ou o alcoolismo dos caboclos de lança dos maracatus rurais, comumente vistos como uma expressão de riqueza cultural e não de miséria social. Seria uma exibição realista de uma face brasileira, mas ainda assim limitada, parcial, incompleta. Vamos esperar pelos outros filmes africanos que chegarão até nós.

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