quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

A cidade em chamas

Brasília está em polvorosa. Mas à maneira dela, claro. Isso significa dizer que a cidade está naquele clima de faxina doméstica às vésperas de uma festa familiar, do almoço que reúne os vários braços do clã, de primos distantes que chegam de avião aos tios do interior que trazem compotas para a sobremesa. É uma movimentação de limpeza de última hora, de ajustes finais, operários dependurados em prédios, cinegrafistas pendulando em arquibancadas improvisadas, grama sendo aparada, helicóperos batrulhentos em sobrevoos rasantes, militares e policiais ensaiando posturas e deslocamentos. Mas tudo, como dizia, à maneira local - ou seja, num clima de prévia da festa bem pouco animado. Com aquele indefectível espírito de cidade de servidor público que cumpre as normas, respeita horários, abraça padrões, sucumbe a protocolos. Brasília está em polvorosa, mas lenta como sempre nos finais de ano. Tudo por causa da posse de Dilma, como todas as posses ameaçadas pela chuvarada que nesta época do ano torna Brasília uma cidade ainda mais brasiliense, no seu silêncio de repartição e na sua arquitetura de comtemplação.

Talvez Brasília não tenha sido feita mesmo para se viver, mas para se olhar. Enquanto a gente tenta distrair uma comum e esperada depressão de fim de ano que caracteriza a cidade - todos os que podem vão embora, tiram ferias, viajam para seus torrões ou seus litorais - vendo os preparativos para a posse, fica e se impõe essa impressão de dias nublados. A feição de uma cidade que, de um urbanismo e arquitetura tão festejadas, parece que se basta em si, de maneira que se porvutura tem seus habitantes é apenas a pretexto de alguma figuração antropológica. Seríamos, seus moradores, qual avatares de uma realidade ilusória a serviço da moderna arquitura. Seríamos brinquedos vivos nas mãos do deus Niemmeyer, este homem imortal posto que é traço. E Brasília, esta cidade que só se justificaria de segunda a sexta, entre março e junho, agosto e novembro. Uma urbe sufocada por um calendário - ou por outra, por ele justificada. Sem espaço para datas vermelhas na folhinha.

Contra a corrente dos dias chuvosos e do céu branco, e sobre o cenário de clones da presidente testando esquemas para as solenidades da posse, somos salvos por uma outra expectativa, menos solene e mais sonhadora - a megasena milionária da passagem do ano. Enquanto na Câmara dos Deputados os plantonista tentam justificar sua presença dentro da gaiola de ângulos que o arquiteto criou, bolões e mais bolões de apostas circulam pelos corredores, gabinetes e demais desvãos. Há o bolão da Câmara, o bolão do Senado, o bolão da Rádio Câmara, o bolão tipo quarteto que sai a oitenta pratas - e a teimosia solitária, mas bem mais coerente com a Brasília de fim de ano, daqueles que se recusam à força coletiva da aposta conjunta e se lançam sozinhos rumo à lotérica mais próxima. Os azarados profissionais da paisagem, incapazes de acreditar na sorte das pessoas e do lugar. O habitante dos dias úteis, integrado ao céu nem sempre azulado e à arquitetura bem pouco funcional da cidade em polvorosa sob o céu aberto, embora nublado.

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